1. O Contexto da Mensagem de Lucas: Evangelho e Atos

O Evangelho de Lucas, assim como o livro de Atos dos Apóstolos, foi concebido como uma carta detalhada a um homem chamado Teófilo. Embora não tenhamos o pedido original, a narrativa sugere que Teófilo, possivelmente um nobre grego, buscou compreender mais profundamente a figura de Jesus e o movimento que Ele iniciou, conhecido como a Igreja. Em resposta, Lucas estrutura sua obra em duas partes complementares: a primeira, o Evangelho, foca na vida e nos ensinamentos do Rei, Jesus, e na natureza de Seu Reino; a segunda, Atos, narra o desenvolvimento da Igreja a partir da fundação estabelecida por esse Rei e Seu Reino.

Juntas, essas duas obras condensam um período histórico de transformação fundamental para o pensamento mundial. A vinda de Cristo representa um divisor de águas tão profundo que a própria contagem do tempo foi redefinida em "antes" e "depois" Dele, marcando a encarnação do divino entre os homens. É com essa magnitude em mente que adentramos o terceiro capítulo de Lucas, um ponto crucial onde o cenário para a manifestação pública do novo Reino é cuidadosamente estabelecido.


2. O Cenário Político e Religioso na Época de João Batista

Para que Teófilo compreendesse a magnitude do que estava por vir, Lucas inicia o capítulo 3 com uma precisa contextualização histórica, pintando um retrato vívido do poder que dominava o mundo. Ele estabelece o tempo: o décimo quinto ano do reinado de Tibério César, o imperador em Roma. Em seguida, mapeia a estrutura de poder na região da Judeia, um território fragmentado e controlado por líderes submissos ao Império Romano.

Pôncio Pilatos governava a Judeia, enquanto Herodes era o tetrarca da Galileia. O termo "tetrarca" refere-se ao governante de uma das quatro divisões de um território; neste caso, a região estava dividida entre Herodes, seu irmão Filipe (governante da Itureia e Traconites) e Lisânias (governante de Abilene). Essa estrutura política, com seus quatro governadores regionais, demonstrava a hegemonia de Roma e sua forma de administrar as províncias conquistadas.

No entanto, o poder não era apenas político. Lucas também descreve o cenário religioso, mencionando Anás e Caifás como os sumos sacerdotes. Essa simples menção já expunha uma profunda corrupção, pois, segundo a lei judaica, só poderia haver um sumo sacerdote por vez. A existência de dois líderes no posto mais alto da religião evidenciava a interferência e a manipulação do Império Romano, que nomeava e depunha líderes religiosos conforme seus interesses.

É neste cenário de poder político opressor e de uma religião institucionalmente corrompida que Lucas insere a frase decisiva: "a palavra de Deus veio a João, filho de Zacarias, no deserto". A mensagem divina não surgiu dos palácios de Roma ou dos governadores locais, nem do Templo em Jerusalém. Ela veio de fora, do deserto, através de um homem que, apesar de ser filho de sacerdote e ter seu lugar de direito no Templo, escolheu romper com o sistema para anunciar a chegada de um Reino completamente diferente.


3. João Batista: A Voz no Deserto e o Confronto com o Sistema Corrompido

A chegada da palavra de Deus a João no deserto não foi um evento isolado, mas o cumprimento de uma antiga profecia. Lucas cita diretamente o profeta Isaías para legitimar a missão de João: "Voz do que clama no deserto:

‘Preparem o caminho do Senhor, endireitem as suas veredas’" (Lucas 3:4, citando Isaías 40:3).

João era o prenúncio da chegada de um novo Reino, e sua mensagem era um chamado radical à transformação.

Sua pregação não era suave ou conciliadora. Ao se deparar com as multidões, ele as confrontava duramente, chamando-as de "raça de víboras" e questionando sua real intenção de escapar da "ira vindoura". Ele desmantelava a falsa segurança baseada na linhagem, advertindo:

"não comecem a dizer a si mesmos: ‘Temos Abraão por pai’. Porque eu lhes digo que destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão" (Lucas 3:8).

A salvação não viria por herança, mas por uma mudança genuína de coração.

Com a metáfora do "machado já posto à raiz das árvores", João anunciava um juízo iminente sobre tudo o que não produzisse "bons frutos". Ele se posicionou na contramão do sistema religioso vigente, que se baseava em sacrifícios de animais no Templo. Em vez de rituais externos, João pregava um "batismo de arrependimento para remissão de pecados", um ato que simbolizava uma morte para a vida antiga e um renascimento para uma nova realidade, longe das garras de uma religião opressora.

Essa mensagem ecoava a promessa mais profunda de Isaías 40, que anunciava o perdão de Deus ao seu povo sem sequer mencionar o sistema de sacrifícios. O profeta descrevia o Senhor como um pastor que abraçaria seu rebanho, uma promessa impossível de ser cumprida pelos sistemas de poder da época. Tanto o império político quanto a estrutura religiosa operavam na lógica oposta: eles não abraçavam, mas exploravam; não libertavam, mas subjugavam. Ambos navegavam nas águas da necessidade, da escassez e da falta, pois era a partir da carência do povo que seus sistemas se fortaleciam e se perpetuavam.


4. A Crítica à Lógica dos Impérios Político e Religioso

A mensagem de João Batista no deserto era uma denúncia direta não apenas a práticas individuais, mas a toda a lógica sobre a qual os impérios, tanto políticos quanto religiosos, se sustentam. Esses sistemas operam de maneira surpreendentemente similar, construindo seu poder sobre a miséria e a dependência alheia. Para o poder público, a perpetuação da pobreza e da escassez torna-se um mecanismo de controle, pois é na necessidade que ele se apresenta como indispensável.

A política e a religião institucionalizada compartilham a mesma estrutura fundamental: ambas têm seus "deuses" (líderes messiânicos e figuras idolatradas), exigem "votos" (devoção e lealdade cega) e mobilizam uma "militância" (seguidores fanáticos). Um devoto, seja de um político ou de um líder religioso, funcionará na lógica do fanatismo, negando evidências de corrupção e defendendo seu ídolo a qualquer custo. Essa devoção é a base do poder que os sustenta.

Essa dinâmica é perfeitamente ilustrada pela analogia do personagem Mazzaropi, que, montado em um jegue, o fazia andar ao pendurar uma cenoura em uma vara, sempre à sua frente, mas permanentemente fora de alcance. Da mesma forma, os sistemas de poder político e religioso prometem ao povo uma redenção — seja ela a prosperidade material ou a salvação espiritual — que está sempre no horizonte, mantendo-os em um estado de subserviência e esforço contínuo. A promessa é que, através de impostos e ofertas, militância e sacrifícios, um dia o povo alcançará o lugar exaltado onde seus líderes já habitam.

Para que essa lógica funcione, é crucial impedir a emancipação e o pensamento crítico. Seja através de uma ditadura que proíbe o pensamento, seja através de uma democracia que falha em prover educação, o objetivo é o mesmo: manter as pessoas subservientes. Nesse contexto, até mesmo o patriotismo é instrumentalizado. A identidade cristã, no entanto, transcende essa lógica. Um cristão não é primariamente um patriota apegado a fronteiras geopolíticas, mas um "cidadão do céu", filho do Criador de toda a Terra, cujo amor se estende a toda a humanidade, incluindo refugiados e estrangeiros. Os impérios criam o "outro" para fomentar o ódio e justificar a guerra, mas o Reino de Deus convida a amar a todos, sem distinção.


5. O Novo Reino: Semelhante ao Fermento e Semente

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Em total contraste com a lógica da força e do domínio dos impérios, o Reino de Deus, que Lucas apresenta a Teófilo, opera de maneira orgânica, sutil e transformadora. Jesus descreveu esse novo Reino através de parábolas que ilustram sua natureza fundamentalmente diferente.

Ele o comparou ao fermento, uma pequena quantidade que, ao ser misturada à massa, a leveda por completo de dentro para fora. Também o descreveu como uma semente que um semeador lança à terra; ela cresce e se desenvolve por si mesma, "sem que se saiba como", representando um crescimento divino e não uma construção humana. Da mesma forma, o Reino é como um grão de mostarda, a menor das sementes, que se torna uma grande hortaliça, oferecendo abrigo e vida.

Essas imagens revelam um Reino que não se impõe pela força, mas que transforma a partir do interior. Seus cidadãos não são soldados de um império, mas sim "luz do mundo" e "sal da terra", agentes de influência e preservação. Trata-se de um Reino de liberdade, não de controle, fundamentado na realidade espiritual de "Cristo em nós, a esperança da glória". Sua expansão não ocorre por conquista territorial, mas pela transformação de corações.


6. A Deturpação da Missão da Igreja pela Lógica Imperial

A história demonstra um ponto de inflexão trágico onde a religião cristã perdeu a ótica de sua missão original: o momento em que se uniu ao poder imperial. Com a conversão de Constantino, a Igreja, em vez de ser uma força contracultural, abraçou a lógica de Roma e confundiu sua vocação. A missão e a evangelização foram gradualmente substituídas por uma agenda de ocupação de espaço político e territorial.

Essa distorção persiste até os dias de hoje. A mentalidade imperial se manifesta na busca por superioridade numérica e poder político, como se a transformação de uma nação dependesse de ter "mais deputados evangélicos, mais vereadores evangélicos, um presidente evangélico". O objetivo deixa de ser a transformação de corações e passa a ser a imposição de uma moralidade externa, utilizando a força política para ditar o que pode ou não ser feito na sociedade.

Por trás dessa busca por representatividade, muitas vezes se esconde uma agenda de tráfico de influências e negociações que beneficiam as instituições religiosas ou seus proprietários, e não o Reino de Deus. Confunde-se a missão com a obtenção de facilitadores no poder e a imposição de uma religião por intimidação.

Essa abordagem ignora a verdade fundamental de que o Reino de Deus é como uma semente plantada no coração; ele não pode ser empurrado "goela abaixo" por meio de decretos ou poder político. Lugares, como uma cidade ou uma nação, não podem ser "evangélicos"; apenas pessoas podem ser cristãs. Ao adotar as ferramentas do império — a força, o domínio, o controle e a influência —, a Igreja abandona a lógica do Reino que foi chamada a proclamar e se torna apenas mais um sistema de poder competindo por hegemonia.


7. As Perguntas das Multidões: Caminhos para o Novo Reino

É revelador notar quem se sentiu atraído pela mensagem radical de João Batista. Enquanto ele pregava no deserto sobre arrependimento e um novo Reino, nenhum representante do poder imperial ou do sistema religioso de Jerusalém o procurou. Os que vieram até ele, fazendo a pergunta crucial "o que devemos fazer?", eram justamente as pessoas comuns e os agentes que atuavam nas engrenagens mais baixas desses mesmos sistemas opressores.

O primeiro grupo era o povo, a multidão subserviente que vivia sob a constante pressão do Império e da religião, sempre em busca de uma vida melhor dentro das regras impostas.

O segundo grupo eram os publicanos. Estes eram judeus que trabalhavam para Roma como cobradores de impostos. Eram odiados por seu próprio povo não apenas por sua colaboração com o inimigo, mas principalmente porque o sistema permitia que enriquecessem ilicitamente. Roma estipulava um valor a ser coletado, e tudo o que o publicano conseguisse cobrar além dessa quantia era seu lucro. A conversão de Zaqueu, que prometeu restituir quadruplicadamente a quem havia defraudado, ilustra a dimensão da exploração que praticavam.

O terceiro grupo era composto por soldados. Como executores da Pax Romana, eles detinham a autoridade do Império nas ruas. Esse poder, no entanto, frequentemente se corrompia em abuso: eles realizavam julgamentos sumários, levantavam falsos testemunhos contra inocentes e extorquiam a população, não se contentando com seu soldo.

A lógica dos impérios político e religioso permitia que esses indivíduos criassem seus próprios "pequenos reinos" de poder e exploração. Ao se associarem a esses sistemas, eles recebiam uma licença para exercer sua própria ganância, maldade e violência, tornando-se o pior que poderiam ser. Essa dinâmica é sutil e demoníaca. O verdadeiro perigo não está na figura caricata do endemoniado, mas no sistema que, com uma aparência respeitável — seja a de um oficial ou a de um sacerdote —, subjuga, destrói e planta a mesma ordem caótica de sua alma na vida dos outros. As perguntas feitas a João, portanto, representavam um profundo desejo de romper com as ligaduras desse sistema que os corrompia.


8. A Advertência Contra a Ganância e a Falsa Espiritualidade

As respostas de João Batista às perguntas das multidões são diretas, práticas e expõem o cerne da ética do Novo Reino, que se opõe frontalmente à ganância que alimenta os sistemas imperiais.

Ao povo, ele diz: "Quem tiver duas túnicas, reparta com quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo". Aqui, a verdadeira dignidade da vida é revelada não nas promessas de igualdade da política ou de prosperidade da religião, mas no "chão da vida". No Reino de Deus, que é invisível e interno, a ação de compartilhar não é motivada por um decreto político ou pela busca de uma bênção, mas brota de um coração transformado que vê a necessidade do outro. O que se recebe de graça, de graça se dá.

Aos publicanos, sua instrução é: "Não cobrem mais do que o estipulado". Em vez de exigir que abandonassem sua profissão, João os chama a operar dentro dela com uma nova lógica: a do contentamento. Eles deveriam rejeitar o sistema ganancioso que os incentivava a extorquir e se satisfazer com o que era justo. Isso redefine a espiritualidade: ela não é medida pela frequência ao Templo, mas pela honestidade e ética praticadas no dia a dia, pelos frutos visíveis de uma vida transformada.

Aos soldados, ele ordena: "Não sejam prepotentes, não façam denúncias falsas e contentem-se com o salário que vocês recebem". Este é um chamado para não se deixar vencer pela "lógica suja de Roma", para não abusar do poder concedido pelo império. Enquanto outros poderiam ver o poder como uma oportunidade para se aproveitar, o cidadão do Reino entende que a verdadeira vitória não está em ter, ajuntar ou dominar, mas em ser uma nova criatura.

Essa advertência contra a "sórdida ganância" é um tema consistente no Novo Testamento, como visto nas instruções a diáconos em 1 Timóteo 3:8 e a presbíteros em 1 Pedro 5:2-4, que devem servir não por constrangimento ou desejo de lucro, mas de boa vontade. O apóstolo Paulo, em Filipenses 4, ecoa a mesma verdade ao afirmar que aprendeu a viver contente em toda e qualquer situação. A lógica do Evangelho é sobre compartilhar, dar e repartir, não sobre ter, expandir e ajuntar.

A igreja, como comunidade do Reino, deveria ser o lugar onde essa lógica prevalece. Não um espaço com um "altar" sagrado que separa o clero dos leigos, mas uma comunidade de iguais onde o amor, o serviço e a simplicidade são encontrados em todos. No entanto, o perigo de uma falsa espiritualidade é constante. Existem aqueles que, com uma desculpa espiritual, uma base bíblica distorcida e uma "palavra profética", dão vazão ao seu ódio, violência e ganância, tornando-se detestáveis.

Em última análise, a mensagem de João Batista é um chamado para se tornar um "beduíno do deserto": alguém que entende que existe um outro Reino, espiritual e livre, que opera fora dos eixos da ganância. É um convite para viver uma vida de contentamento, honestidade e generosidade, compreendendo que o Reino dos Céus já chegou.


A Casa da Rocha. #03 - Lógica dos Impérios e o Novo Reino - Zé Bruno - Meu Caro Amigo. Disponível em: https://www.youtube.com/live/QCjcnUbtCuw?si=QESPJC8XL3xh7ItY. Acesso em: 23/09/2025.

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em 24/10/2025
Matéria: Bíblia
Artigo

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