1. Introdução: Uma Cura que Revela uma Verdade Maior

A narrativa da cura do cego de nascença, registrada no nono capítulo do Evangelho de João, transcende a descrição de um milagre extraordinário. Trata-se de um evento histórico, uma ocorrência real que serve como palco para uma das mais profundas lições de Jesus sobre a natureza da visão e da cegueira. Enquanto a cura física do homem é o catalisador da história, o foco de Cristo não está no evento em si, mas na verdade espiritual que ele manifesta.

A discussão que se segue entre Jesus, os discípulos, os fariseus e o homem curado raramente se detém nos aspectos médicos ou sobrenaturais da restauração da vista. Em vez disso, o diálogo é construído sobre metáforas de luz e trevas, dia e noite, ver e não ver. Jesus utiliza essa cura excepcional para se revelar como "a luz do mundo", demonstrando que a maior escuridão não é a ausência de luz nos olhos, mas a ausência da verdade no coração. Este artigo explora como esse milagre se torna um sinal poderoso, apontando para a necessidade universal de uma iluminação que só Cristo pode oferecer.


2. A Pergunta Errada: Buscando Culpados em Meio ao Sofrimento

Diante da condição do homem cego de nascença, a primeira reação dos discípulos não foi de compaixão imediata, mas de curiosidade teológica. Eles prontamente buscaram uma causa, uma explicação que se encaixasse em sua compreensão de justiça divina.

"Mestre, quem pecou para que esse homem nascesse cego? Ele ou os pais dele?" João 9:2

Essa pergunta revela uma mentalidade profundamente enraizada na "lógica da retribuição", uma crença de que o sofrimento é sempre uma consequência direta e visível do pecado. Para eles, a equação era simples: pessoas boas vivem coisas boas, enquanto pessoas más enfrentam destinos ruins. A aflição daquele homem deveria, portanto, ter um culpado claro, seja ele mesmo — pecando de alguma forma ainda no ventre —, ou seus pais, cujas transgressões teriam recaído sobre o filho.

Essa perspectiva, embora simplista, não era infundada. Ela encontrava ecos na história de Israel, uma nação que experimentou o exílio e o domínio estrangeiro como resultado de sua desobediência a Deus. No entanto, ao aplicar essa lógica de forma indiscriminada a um indivíduo, os discípulos perdiam de vista a complexidade da soberania divina e a realidade de um mundo caído. Enquanto Jesus via a aflição do homem e se movia para transformá-la, seus seguidores estavam mais preocupados em debater a origem do problema, tentando encaixar a dor alheia em suas categorias religiosas. Eles olhavam para trás, em busca de uma causa, enquanto Cristo apontava para frente, revelando um propósito.


3. O Propósito Divino: "Para que se Manifestem as Obras de Deus"

Jesus redireciona radicalmente a conversa, afastando-a da busca por culpados e focando-a em um propósito redentor. Sua resposta é uma das declarações mais transformadoras sobre o sofrimento em toda a Escritura:

"Nem ele pecou, nem os pais dele; mas isso aconteceu para que nele se manifestem as obras de Deus." João 9:3

Com essa frase, Cristo eleva a condição daquele homem de um suposto castigo para um palco da manifestação da glória divina. A cegueira não era o fim da história, mas o cenário escolhido por Deus para revelar algo muito maior. Imediatamente, Jesus aprofunda essa ideia, utilizando as metáforas de luz e trevas que se tornarão o fio condutor de toda a narrativa:

"É necessário que façamos as obras daquele que me enviou enquanto é dia. A noite vem, quando ninguém pode trabalhar. Enquanto estou no mundo, eu sou a luz do mundo." João 9:4-5

Ele deixa claro que a "obra de Deus" a ser manifestada transcende a cura física. A restauração da visão daquele homem é um sinal que aponta para a missão de Cristo de trazer luz espiritual a um mundo em trevas. A estrutura da frase usada por Jesus é reveladora. Ao dizer "para que nele se manifestem as obras de Deus", o foco muda. "As obras" se tornam o sujeito da ação, e o homem, o agente passivo. Ele é o meio através do qual a glória de Deus é refletida. É como se Jesus dissesse: "Nesta cura, vou manifestar verdades que os olhos naturais não podem ver. O que vocês estão prestes a testemunhar é um vislumbre do meu plano cósmico de redenção."


4. Um Método Incomum para uma Nova Visão

Em vez de uma cura instantânea por meio de uma simples palavra, Jesus adota um método terreno e profundamente simbólico. O evangelho relata em João 9:6:

"Depois de dizer isso, Jesus cuspiu na terra, fez lama com a saliva e com a lama untou os olhos do cego."

Este ato, longe de ser aleatório, evoca a própria narrativa da criação, quando Deus formou o primeiro homem do pó da terra. Ao usar o barro, Jesus parece indicar que não estava apenas consertando um par de olhos defeituosos, mas realizando uma obra de nova criação, reconfigurando a existência daquele homem.

A cura, no entanto, não se completa com a aplicação do lodo. Ela exige um passo de fé e obediência por parte do cego. Em João 9:7, Jesus lhe ordena: "Vai lavar-se no tanque de Siloé". O próprio apóstolo João faz questão de nos dar a chave interpretativa para este comando, acrescentando no mesmo versículo: "(Siloé quer dizer enviado)". O homem cego é instruído a se lavar nas águas do "Enviado", um título que aponta diretamente para a identidade de Cristo como Aquele que foi enviado pelo Pai.

A cura, portanto, está intrinsecamente ligada ao reconhecimento e à submissão a Jesus. O versículo termina com a consumação do milagre: "O cego foi, lavou-se e voltou vendo". Esta jornada espelha a experiência da conversão: nascemos em trevas, o toque de Cristo nos desperta, e através da obediência à Sua Palavra ("lavar-se no Enviado"), nossos olhos se abrem para uma realidade que antes nos era inacessível.

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5. A Jornada da Fé: Do Testemunho Simples à Adoração Profunda

A perseguição e os repetidos interrogatórios, paradoxalmente, servem como um catalisador para a fé do homem recém-curado. Sua compreensão sobre Jesus evolui a cada confronto, traçando uma jornada notável do testemunho factual à adoração convicta. Inicialmente, ao ser questionado por seus vizinhos, sua descrição é simples e direta. Em João 9:11, ele relata:

"O homem chamado Jesus fez lama, passou nos meus olhos e disse: 'Vá ao tanque de Siloé e lave-se'. Então eu fui, lavei-me e estou vendo."

Contudo, ao ser levado perante os fariseus e pressionado a dar sua opinião, seu entendimento se aprofunda. À pergunta "O que você diz a respeito dele, uma vez que ele te abriu os olhos?", ele responde com crescente convicção em João 9:17: "É um profeta". Ele passa a enxergar Jesus não apenas como um indivíduo, mas como um agente de Deus. Diante da hostilidade dos líderes, que insistem que Jesus é um pecador, sua lógica se torna irrefutável, ancorada em sua experiência pessoal. Em João 9:25, ele entrega seu testemunho mais poderoso:

"Se é pecador, eu não sei. Uma coisa eu sei: eu era cego e agora vejo."

A jornada culmina em seu reencontro com Cristo. Após ser expulso, Jesus o encontra e, em João 9:35, lhe faz a pergunta definitiva: "Você crê no Filho do Homem?". Após a revelação de Jesus, a resposta do homem em João 9:38 é imediata e completa: "Eu creio, Senhor". E, como ato final de sua transformação, o texto afirma que "o adorou". Ele completou a transição de beneficiário de um milagre para um verdadeiro adorador do Filho de Deus.


6. A Cegueira dos que Enxergam: A Resistência da Religião

Enquanto a visão do homem curado se tornava cada vez mais clara, a cegueira espiritual dos fariseus se intensificava. A reação da elite religiosa ao milagre revela uma profunda ironia: aqueles que se consideravam os guardiões da luz eram, na verdade, os mais resistentes a ela. Sua principal preocupação não era a restauração de um homem, mas a violação de suas tradições. A acusação central contra Jesus era que Ele "não guarda o sábado" (João 9:16), um argumento que os impedia de reconhecer a origem divina do sinal.

A investigação que se segue é marcada por ceticismo e hostilidade. Eles se recusam a acreditar na história, chegando a sugerir que o homem nunca fora cego. Interrogam seus pais, que, intimidados, respondem com medo, pois os líderes "já tinham combinado que se alguém confessasse que Jesus era o Cristo, seria expulso da sinagoga" (João 9:22). Esse detalhe expõe a verdadeira natureza do conflito: não se tratava de uma dúvida honesta, mas de uma decisão deliberada de suprimir a verdade para proteger seu sistema de poder e controle religioso.

A discussão não gira em torno da bênção recebida, mas da identidade de Jesus. O sistema religioso que eles representavam, que deveria ser um caminho para Deus, tornou-se uma barreira intransponível. A luz de Cristo expôs a rigidez e a hipocrisia de seus corações. Ao expulsarem o homem curado por seu testemunho, eles simbolicamente expulsaram a própria obra de Deus de seu meio, escolhendo permanecer na escuridão de suas regras em vez de se alegrar na luz da graça manifestada.


7. O Veredito de Cristo: O Juízo que Traz Luz e Revela as Trevas

A conclusão da narrativa revela o propósito mais profundo da vinda de Cristo. Após o homem curado professar sua fé e adorá-lo, Jesus emite um veredito que serve como a chave para entender todo o capítulo. Em João 9:39, Ele declara:

"Eu vim a esse mundo para juízo, a fim de que os que não veem vejam e os que veem se tornem cegos."

Este "juízo" não se refere a uma condenação final, mas a um ato de separação e revelação. A presença de Cristo, a Luz do Mundo, inevitavelmente expõe a verdadeira condição do coração humano. Aqueles que, como o cego de nascença, reconhecem sua escuridão e sua necessidade ("os que não veem"), são os que recebem a visão espiritual. Em contraste, aqueles que, como os fariseus, se orgulham de sua suposta iluminação ("os que veem"), acabam tendo sua cegueira confirmada e aprofundada.

Os fariseus, que ouviam a conversa, imediatamente se sentem confrontados e perguntam com sarcasmo em João 9:40: "Por acaso nós também somos cegos?". A resposta de Jesus, em João 9:41, é a conclusão devastadora da história:

"Se vocês fossem cegos, não teriam pecado algum. Mas porque agora dizem: 'Nós vemos', o pecado de vocês permanece."

A mensagem é clara e penetrante. Se eles admitissem sua ignorância espiritual e sua necessidade de um Salvador, estariam abertos à graça e ao perdão. A cegueira honesta não seria um pecado, mas uma condição a ser curada. No entanto, a arrogância de clamar ter a visão completa enquanto rejeitavam a fonte da Luz era o que os condenava. A cegueira mais perigosa e incurável é a do indivíduo que se recusa a admitir que está nas trevas. O pecado deles permanecia não por causa de sua ignorância, mas por causa de sua orgulhosa pretensão de conhecimento.


Conclusão Reflexiva

A grande lição de João 9 não é a tragédia da cegueira física, mas o perigo da cegueira espiritual que se mascara de visão. A verdadeira escuridão não reside na incapacidade de ver o mundo, mas na arrogância de acreditar que já se vê tudo, fechando assim a porta para a única Luz capaz de iluminar a alma: Cristo Jesus.


A Casa da Rocha. #14 - Voltamos a Ver - Zé Bruno - O povo da Cruz. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QfxrSPU1iiw. Acesso em: 28/08/2025.

Avatar de diego
em 29/10/2025
Matéria: Bíblia
Artigo

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