1. O Cenário em Betesda: Entre a Superstição e a Espera Passiva

A narrativa descrita no Evangelho de João, capítulo 5, nos transporta para um cenário de grande efervescência religiosa e, ao mesmo tempo, de profundo desespero humano. Em Jerusalém, durante uma das festas judaicas, multidões se reuniam não apenas para os ritos sagrados, mas também em locais como o tanque de Betesda, um verdadeiro spa místico da época. Ali, junto ao portão das ovelhas, jazia "uma multidão de enfermos, cegos, coxos, paralíticos", todos unidos por uma mesma esperança frágil e supersticiosa.

A crença popular que alimentava aquela aglomeração era a de que, periodicamente, um anjo descia dos céus para agitar as águas do tanque. O primeiro que conseguisse entrar na água após esse movimento seria curado de qualquer enfermidade. É importante notar que, conforme apontado por estudiosos, a menção a este anjo (versículo 4) é um acréscimo posterior, não presente nos manuscritos mais antigos, o que reforça o caráter de crendice popular da prática. Aquele ambiente, mais do que um lugar de fé genuína, se assemelhava a uma "corrida olímpica de doentes", onde a bênção parecia depender da agilidade, da sorte ou de quem tinha ajuda para chegar primeiro.

No meio dessa multidão angustiada estava um homem que se tornara um profissional na arte de esperar. Havia 38 anos ele vivia na condição de enfermo, um veterano de Betesda, cuja identidade estava profundamente ligada à sua condição e ao seu lugar naquela fila invisível. Sua paralisia não era apenas física; ele estava imobilizado por uma mentalidade de desculpas e dependência. Sua vida girava em torno de obstáculos: "não tenho ninguém que me ponha no tanque", "quando tento entrar, outro enfermo chega antes de mim". Ele estava aprisionado por uma fé de muletas, aguardando um evento extraordinário que resolvesse sua situação sem exigir dele uma mudança de perspectiva.

Essa busca por sinais e eventos fantásticos, em detrimento da confiança simples na palavra de Deus, revela uma tendência a uma fé mais mística do que prática. O apóstolo Paulo já diagnosticava essa inclinação ao escrever:

"os judeus por um lado, pedem sinais, assim como os gregos buscam sabedoria, mas nós pregamos Cristo crucificado, que é escândalo pro judeu, pro religioso, e é loucura pros gentios." (1 Coríntios 1:22-23)

Para muitos, a cruz parece insuficiente, sendo necessário complementá-la com rituais, locais "sagrados" ou a intervenção de figuras "ungidas". O homem em Betesda personifica essa condição: estava no lugar certo segundo a religião, Jerusalém, mas sua alma estava cativa de uma crendice que o mantinha passivo e focado nas circunstâncias, em vez de buscar a verdadeira fonte de poder e cura.


2. O Encontro com Cristo: Uma Pergunta que Desperta e uma Ordem que Liberta

Em meio ao cenário de superstição e resignação, Jesus se aproxima do homem enfermo há 38 anos e rompe a lógica da espera com uma pergunta direta e aparentemente óbvia: "Você quer ser curado?". À primeira vista, a questão pode soar desnecessária, afinal, quem em sã consciência, sofrendo por quase quatro décadas, não desejaria a cura? Contudo, a profundidade da pergunta de Jesus transcende o físico. Ele não estava apenas questionando o desejo por saúde, mas confrontando a acomodação na enfermidade, a identidade construída sobre a desculpa e a possibilidade de que o homem estivesse mais apegado à sua condição de vítima do que à liberdade da cura.

A resposta do enfermo é reveladora. Ele não diz um "sim" convicto. Em vez disso, repete o roteiro de suas limitações, focando nos obstáculos que o impediam de alcançar a suposta solução mística do tanque:

"Senhor, não tenho ninguém que me ponha no tanque quando a água é agitada. Quando tento entrar, outro enfermo chega antes de mim."

Sua mente estava tão condicionada pela crendice local que ele não conseguiu enxergar a verdadeira fonte da cura parada à sua frente. Ele viu em Jesus apenas mais um potencial ajudante para o ritual, e não o próprio poder que dispensa qualquer ritual. Sua resposta evidencia uma paralisia que ia além das pernas, uma paralisia da alma, presa em justificativas e impotência.

É então que Jesus ignora completamente a lógica do tanque, do anjo e da competição. Ele não agita as águas nem oferece ajuda para colocar o homem na piscina. Ele vai direto ao centro da questão, ao coração do problema, com uma ordem simples, mas carregada de autoridade divina: "Levanta-se, pegue o seu leito e ande". A cura não veio através de um espetáculo, de uma fila ou de um amuleto. Ela se manifestou por meio de uma palavra declarada e uma atitude de obediência. O homem não precisou de superstições nem de ajudas mágicas; ele precisou apenas de um encontro pessoal com o Senhor e da decisão de obedecer à Sua voz.

A ironia é que, com uma única frase, Jesus tornou o tanque e toda a sua mitologia irrelevantes. A verdadeira cura não estava na periferia do que interessa — em águas mágicas ou eventos extraordinários —, mas no relacionamento direto com Aquele que é a própria vida. O milagre não foi um prêmio para o mais rápido ou o mais forte, mas um presente da graça para quem ouviu e obedeceu à Palavra.


3. A Reação da Religião: Quando a Tradição se Torna Mais Importante que a Transformação

Enquanto a cura do homem deveria ser um motivo de celebração e assombro, a narrativa rapidamente muda de foco para o conflito. O milagre aconteceu em um sábado, e para os fiscalizadores da lei, este detalhe era mais importante do que a restauração de uma vida. Enquanto o homem recém-curado pulava de alegria, os líderes religiosos "pulavam de raiva". A alegria da libertação foi imediatamente ofuscada pela sombra da religiosidade fria e legalista.

A abordagem dos judeus ao homem é emblemática. Eles não perguntam sobre o milagre, não se interessam pela identidade de quem realizou tal feito ou pela alegria do homem que, após 38 anos, podia andar. A preocupação deles era puramente processual e legal:

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"É sábado e nesse dia você não tem permissão para carregar o seu leito."

Para eles, o importante não era o livramento daquele indivíduo, mas o fato de ele estar "quebrando o esquema", rompendo com os pressupostos e ofendendo a estrutura religiosa vigente. A vida restaurada era secundária; a regra violada era a questão central. O homem não foi visto como alguém liberto, mas como um "ilegal", cometendo um ato pecaminoso ao carregar sua cama em um dia sagrado. A resposta dele, no entanto, é de uma lógica irrefutável: "O mesmo que me curou, me disse: Pegue o seu leito e ande". Ele instintivamente reconhece que a autoridade para curar é superior à autoridade para regulamentar.

Este episódio expõe a essência de uma religião que se preocupa mais com as coisas do que com as pessoas, mais com as conveniências da estrutura do que com a compaixão. A organização, o calendário e o poderio da instituição haviam se tornado mais sagrados que a própria vida humana, que deveria ser o foco de qualquer expressão de fé. Eles não eram capazes de ver a angústia daquele homem, pois estavam cegos por suas próprias regras. Como o próprio Jesus afirmaria em outro momento, "o sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado". Para aqueles líderes, a vida era um detalhe a ser ajustado à lei, enquanto para Jesus, a lei servia para proteger e promover a vida.


4. A Nova Aliança: A Verdadeira Cura para Além de Rituais e Regras

O relato avança e nos mostra um reencontro significativo entre Jesus e o homem agora curado. No templo, Jesus o adverte: "Olhe, você foi curado, não peque mais para que não lhe aconteça coisa pior". Esta frase, por vezes mal interpretada, não deve ser lida como uma confirmação de que sua doença era um castigo por um pecado específico. A Bíblia é clara ao afirmar que a paga final do pecado é a morte, não necessariamente infortúnios terrenos como uma enfermidade ou um pneu furado. A advertência de Cristo é, na verdade, um chamado profundo à transformação de vida. O "pior" a que Ele se refere é uma existência sem propósito, um retorno à paralisia espiritual, mesmo com o corpo são. Fracasso, sob a ótica divina, é ter sucesso em objetivos que não estão alinhados com a vontade de Deus.

Este chamado para uma nova vida está no cerne da Nova Aliança que Jesus veio estabelecer. Enquanto a aliança do Sinai foi escrita em tábuas de pedra, gerando um sistema de regras externas, a Nova Aliança é firmada pela graça e escrita "no coração e na mente". Não se trata mais de seguir um código para alcançar a Deus, mas de ter o coração transformado por Ele para viver em obediência por amor. A fé, portanto, não é uma questão de força de vontade ou obsessão, mas de conhecimento. Como ensina o apóstolo Paulo, "a fé vem pelo ouvir, e o ouvir da palavra de Deus". Quanto mais conhecemos quem Deus é, mais sólida se torna nossa convicção.

É exatamente essa nova dinâmica que os líderes religiosos não conseguem compreender. A perseguição a Jesus se intensifica não apenas por Ele curar no sábado, mas por sua resposta audaciosa:

"Meu pai trabalha até agora e eu trabalho também."

Com essa declaração, Jesus não apenas justifica sua ação, mas se afirma como igual a Deus, reivindicando a mesma autoridade e natureza do Pai. Essa foi a afronta final ao sistema deles. A graça de Cristo se revela como uma força que desmonta os dois extremos da falsa espiritualidade: de um lado, o misticismo supersticioso, que busca a Deus em rituais vazios e sem compromisso; do outro, a religião fria e sem amor, que aprisiona as pessoas em regras enquanto ignora a misericórdia. Jesus se apresenta como o centro, o único caminho onde a verdadeira vida, cura e propósito podem ser encontrados.


5. O Chamado à Ação: Deixando a Paralisia para uma Vida de Propósito

A história do paralítico de Betesda nos força a redefinir o que consideramos um milagre. Frequentemente, confundimos o sobrenatural com o meramente fantástico ou extraordinário. No entanto, o milagre mais profundo não é apenas a cura de um corpo, mas a transformação de uma vida que passa da inércia para o movimento com propósito. Deus ainda realiza curas espetaculares, mas o testemunho mais poderoso de Seu poder é um ser humano carnal e falho sendo transformado para servir aos Seus desígnios eternos. A verdadeira saúde é ter a capacidade de cumprir a missão para a qual fomos criados.

Existe um perigo real em ambientes de fé que, em vez de impulsionarem as pessoas para a ação, acabam por treinar "paralíticos para ficarem imóveis". Promovem uma dependência contínua de eventos, cultos e figuras ungidas, onde o "vinde" substitui o "ide" ordenado por Cristo. O Evangelho, no entanto, é um chamado ao movimento. O mesmo Jesus que disse ao homem "levanta-te e anda" nos chama hoje a sair do nosso lugar de conforto e desculpas.

Esse poder transformador da Palavra não está restrito aos tempos bíblicos. Considere o testemunho de um engenheiro que, por circunstâncias difíceis, tornou-se lavador de carros em outro país. Aflito e distante de Deus, ele ouviu um estudo bíblico no rádio do primeiro carro que limpava. A mensagem o impactou. No segundo carro, a mesma estação, o mesmo programa. No terceiro, a mesma voz, a mesma verdade. Ali, entre baldes e esponjas, ele se rendeu a Cristo. Aquele encontro não o deixou parado; em poucos meses, ele já havia iniciado três comunidades de fé entre seus compatriotas. Sua vida foi radicalmente mobilizada. A missão não tem a ver com o que fazemos, como lavar carros ou pregar em um púlpito, mas com quem somos. Não se trata de mudar de emprego, mas de mudar de patrão.

Portanto, o apelo do Evangelho não é um convite passivo para "aceitar" Jesus. É uma ordem, como a que foi dada em Betesda: "Levanta-te e anda". É um chamado para abandonar as muletas das crendices, a rigidez da religiosidade e as desculpas que nos mantêm paralisados. A verdadeira experiência com Cristo nos coloca de pé, com nosso "leito" de testemunho nos braços, caminhando na direção que Ele aponta, prontos para ouvir, ver e agir segundo a Sua vontade.


Conclusão Reflexiva

No fim, a história de Betesda nos deixa com a mesma pergunta que Jesus fez àquele homem: diante da paralisia de nossas desculpas, da frieza de nossas tradições e da sedução de nossas superstições, nós realmente queremos ser curados? Pois a graça não nos encontra para nos deixar confortáveis na beira do tanque, mas para nos colocar de pé, com um propósito nas mãos e um caminho novo a seguir.


A Casa da Rocha. #17 - A graça de Deus, em Jesus, entre crendices e pedradas - Rubinho Pirola - Quem é Jesus?. Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dUgYK2A43Gc. Acesso em: 29/08/2025.

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há 3 semanas
Matéria: Bíblia
Artigo

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