1. Introdução: Um Encontro Improvável no Poço de Jacó
A narrativa do Evangelho de João nos conduz a um dos encontros mais radicais e transformadores do ministério de Jesus: sua conversa com a mulher samaritana junto ao histórico poço de Jacó. Este não foi um encontro casual, mas um ato intencional que quebrava múltiplas barreiras sociais, religiosas e morais da época. Em uma cultura de segregação profunda, a cena de um mestre judeu se dirigindo publicamente a uma mulher — e, ainda por cima, samaritana — era simplesmente impensável.
Os samaritanos eram considerados impuros pelos judeus, um povo com uma herança religiosa mista e práticas de adoração vistas como heréticas. A mulher em questão carregava ainda estigmas pessoais que a colocavam nos degraus mais baixos da sociedade. Com um histórico de cinco maridos e vivendo com um homem que não era seu esposo, ela personificava tudo o que era considerado impuro e indigno de se aproximar do sagrado. Ela era o retrato de alguém que a religiosidade convencional manteria à distância.
Contudo, este episódio redefine a natureza da santidade. Frequentemente, associamos santidade a um processo de higienização, uma separação asséptica do que é impuro. Jesus, no entanto, demonstra que sua santidade não é uma barreira que o isola, mas uma presença ativa de graça e misericórdia que se move em direção àqueles que mais necessitam. Sua pureza não é contaminada pelo pecador; ao contrário, ela purifica e restaura.
Este encontro não é um evento isolado, mas o clímax de uma sequência didática no Evangelho de João. No capítulo 2, Jesus transforma água em vinho em uma festa de casamento, ensinando que a verdadeira purificação não vem mais dos rituais com água, mas de seu próprio sangue, e que a verdadeira celebração é a da salvação. No capítulo 3, ele dialoga com Nicodemos, um nobre fariseu, um dos principais líderes de Israel, para revelar que toda a nobreza e conhecimento religioso são insuficientes sem a experiência de nascer de novo. Agora, no capítulo 4, João contrasta o nobre com a marginalizada, mostrando que o mesmo Deus que exige um novo nascimento de um mestre da lei é o que oferece "água viva" à pessoa mais desprezada, revelando a ela sua identidade messiânica e a essência da verdadeira adoração: em espírito e em verdade.
2. O Alimento que os Discípulos Não Conheciam
Enquanto a mulher samaritana, agora a primeira e mais improvável missionária, corre em direção à cidade para anunciar sua descoberta, os discípulos retornam de sua própria missão: buscar o almoço. Eles encontram Jesus, não cansado ou faminto, mas visivelmente absorto em um estado de profunda satisfação espiritual. A narrativa sugere um êxtase de alegria no Mestre, um contentamento que os discípulos, com suas preocupações terrenas, não conseguem compreender. Enquanto eles desembalam a comida, a mente de Jesus está focada na colheita espiritual que se iniciava: uma mulher marginalizada se tornara um canal da graça, e um povo desprezado estava prestes a encontrar o Salvador.
É nesse contraste entre o físico e o espiritual que o diálogo se desenrola. Preocupados com o bem-estar de Jesus, os discípulos insistem: "Mestre, coma!". A resposta de Jesus, no entanto, desvia o foco do alimento perecível para uma realidade superior:
"Eu tenho uma comida para comer que vocês não conhecem."
A confusão dos discípulos é imediata e previsível. Presos a uma lógica puramente material, eles cochicham entre si: "Será que alguém lhe trouxe algo para comer?". Eles não conseguem conceber uma fonte de sustento que não seja física. É então que Jesus revela a essência de sua força e propósito, uma das declarações mais profundas de seu ministério:
"A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra."
Com essa frase, Jesus transforma um momento cotidiano em uma poderosa parábola. Assim como ele havia usado a água do poço para falar de uma "água viva" que sacia a sede espiritual, ele agora usa o lanche para falar de um "alimento" que nutre a alma. Ele ensina que a verdadeira satisfação, o sustento mais profundo e duradouro, não se encontra no pão terreno, mas na perfeita sintonia com o propósito divino. Estar alinhado com a vontade do Pai e participar de sua obra redentora era, para Jesus, a fonte primária de energia, alegria e vida. Ele estava convidando seus seguidores a descobrir uma fome diferente e um alimento infinitamente mais satisfatório.
3. As Agonias Humanas: A Fome por Origem, Identidade e Propósito
A declaração de Jesus sobre um "alimento" desconhecido vai muito além da nutrição física. Ela toca no cerne da condição humana, expondo uma fome muito mais profunda: uma agonia existencial que, consciente ou inconscientemente, todos enfrentamos. Essa fome se manifesta em quatro buscas fundamentais que moldam nossa jornada na Terra.
A primeira grande agonia é a da origem. A pergunta "De onde eu vim?" ecoa em cada ser humano. Somos meramente o fruto de uma série de eventos aleatórios — químicos, físicos e biológicos? Estamos aqui por um mero acidente da natureza, surgindo do nada para voltar ao nada? A ausência de uma resposta satisfatória para essa questão fundamental nos deixa à deriva, sem uma âncora que dê sentido à nossa existência. Se não sabemos de onde viemos, como podemos saber para onde vamos?
A segunda agonia, intrinsecamente ligada à primeira, é a da identidade. Em uma busca incessante por definição, perguntamos: "Quem eu sou?". O mundo moderno nos oferece um cardápio vasto de respostas: somos nosso trabalho, o dinheiro que possuímos, o número de seguidores em nossas redes sociais, a casa onde moramos ou o bairro onde nascemos. Nenhuma dessas coisas é fundamentalmente um pecado, mas o perigo reside em delegar a elas a autoridade de definir nosso valor e nossa essência. Tornamo-nos, como diz a canção, "caçadores de nós mesmos", tentando construir uma identidade a partir de peças externas e passageiras.
A terceira é a agonia do significado. Sem saber de onde viemos ou quem somos, a questão "Para que eu sirvo?" torna-se avassaladora. Vivemos com a certeza de que nossa existência tem um fim, e a consciência da mortalidade intensifica a necessidade de encontrar um propósito. Essa incerteza — "não sei por que vim, nem por que vou, mas também não sei o que estou fazendo aqui" — alimenta uma profunda angústia existencial.
Finalmente, há a agonia do pertencimento. Em meio a essa busca, clamamos por conexão: "Quem está comigo? Quem me acolhe, me entende e me ama? A quem eu pertenço?". Essa necessidade de comunidade e aceitação é uma das fomes mais primordiais da alma humana.
Mesmo que nunca tenhamos articulado nossa jornada com essas categorias, essa linha de agonia permeia nossas ações. As roupas que vestimos, os carros que compramos, as fotos que postamos e as amizades que escolhemos são, em grande parte, tentativas de saciar essas fomes. São esforços para construir um sentido para a existência, para nos alimentarmos de algo que nos diga quem somos neste mundo. Contudo, como os discípulos no poço, muitas vezes buscamos o alimento errado, que satisfaz momentaneamente, mas nunca nutre de verdade.
4. A Lógica do Reino: Encontrando Satisfação e Pertencimento em Cristo
O evangelho se apresenta como a revelação divina que responde de forma definitiva às agonias existenciais que nos afligem. Quando, por um evento espiritual que transcende a lógica humana, reconhecemos a verdade de Cristo, as peças do quebra-cabeça existencial começam a se encaixar, saciando a fome que nenhuma outra coisa no mundo pode satisfazer.
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A Resposta para a Origem: A primeira revelação é que não somos uma obra do acaso ou um acidente biológico. Descobrimos que nossa existência é fruto de um ato intencional de amor. Fomos criados por Deus, o que nos confere um valor e uma dignidade inerentes que não dependem de nossas realizações ou falhas.
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A Resposta para a Identidade: Com a origem estabelecida, nossa identidade é radicalmente redefinida. Reconhecemos nossa condição de pecadores, necessitados de reconciliação, mas, através do arrependimento e da fé, somos adotados como filhos de Deus. Nossa identidade fundamental não está mais no dinheiro que possuímos, no bairro onde moramos, no carro que dirigimos ou em qualquer outro marcador social ou ideológico. Ela está firmada em uma verdade espiritual: somos feitos à imagem e semelhança de Deus.
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A Resposta para o Significado: Sabendo de onde viemos e quem somos, finalmente descobrimos por que estamos aqui. Nosso propósito se alinha com o de Cristo. A resposta é precisamente o "alimento" que Jesus ofereceu aos seus discípulos: nossa maior satisfação passa a ser encontrada em "fazer a vontade do Pai que está no céu e realizar a sua obra". O trabalho que temos, a família que construímos e as escolhas que fazemos passam a ser governados por uma nova ótica, a lógica de um Reino que dá sentido a tudo.
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A Resposta para o Pertencimento: E o mais incrível é que, nessa jornada de descoberta, percebemos que não estamos sozinhos. Encontramos outros que trilharam o mesmo caminho, que descobriram a mesma fonte de vida. Essa comunidade é a Igreja. Não apenas um local a ser frequentado, mas um corpo de pessoas unidas pelo mesmo Espírito, pela mesma missão e pela mesma identidade em Cristo. Encontramos nossa "tribo", nossa família espiritual, onde somos acolhidos, amados e fortalecidos.
Essa descoberta muda fundamentalmente a fonte da nossa satisfação. A lógica do mundo nos leva a um ciclo de consumo incessante, buscando em coisas externas um preenchimento que elas não podem oferecer. É uma busca que sempre nos deixa famintos. Como bem expressa a metáfora moderna:
"Quem come essa [comida] amanhã tem que entrar no drive-thru outra vez, mas quem é satisfeito no reino é satisfeito para sempre."
A lógica do Reino de Deus, portanto, nos liberta dessa busca infrutífera, oferecendo um alimento que verdadeiramente nutre e uma comunidade que verdadeiramente acolhe.
5. O Reino Acima das Divisões: Um Desafio à Polarização Moderna
A beleza do Evangelho, ensinada por Jesus em um lugar tão improvável quanto Samaria, é que sua lógica transcende e desmantela as categorias humanas que geram divisão e conflito. O Reino de Deus opera em uma esfera superior, soberana sobre as narrativas políticas, sociais e culturais que nos polarizam. Jesus, ao permanecer dois dias em Samaria, comendo na mesa de um povo considerado impuro, demonstra na prática que seu Reino não se submete às regras de segregação humanas. Essa atitude radical nos desafia a questionar se a lógica do Reino realmente governa nossas próprias relações.
Imagine os cenários contemporâneos. Em uma celebração de Ceia, poderiam um judeu convertido ao cristianismo e um palestino que encontrou Jesus partir o pão juntos? A lógica do Reino diria que sim, pois em Cristo não há mais judeu nem gentio. Suas identidades políticas e históricas, embora reais, se tornariam secundárias à sua nova identidade como irmãos no Salvador. O mesmo se aplica a um grande empresário e ao presidente de um sindicato de trabalhadores. Sentados lado a lado, a lógica da luta de classes ou do poder do capital daria lugar à lógica do Reino, onde ambos são pecadores redimidos, nivelados aos pés da cruz.
E quanto à polarização política que tanto marca nossa era? Dois irmãos, um que veste a camisa verde e amarela e outro que veste a vermelha, que trocaram acusações em manifestações distintas, podem se reconhecer como membros da mesma família em Cristo? O Reino de Deus é superior às categorias de direita ou esquerda. Pensar que o significado do sacrifício de Jesus precisa ser completado ou validado por uma ideologia política é subestimar radicalmente o poder do Evangelho. Cristo não veio para endossar uma plataforma humana; Ele veio estabelecer um Reino eterno. Como Ele mesmo declarou:
"Meu reino não é desse mundo."
Essa afirmação não é um convite à alienação, mas um chamado a uma lealdade superior. Um verdadeiro cristão, especialmente em uma posição de poder ou influência, não seria guiado pelo vocabulário do ódio e da agressão, tão comum em nossas disputas. Pelo contrário, o espírito de reconciliação e a misericórdia orientariam suas ações. Ele poderia até ser visto como ingênuo ou traidor por seu próprio grupo, pois buscaria o diálogo com o "outro lado", não por interesse político, mas pelo bem comum, refletindo o caráter do Rei que serve.
A nossa fome não deve ser saciada pelas vitórias de uma narrativa terrena, seja ela qual for. Resumir a razão de nossa vida, nossa alegria ou nossa agonia, a um resultado político ou ideológico é, como afirma a transcrição, "uma pobreza de espírito da pior qualidade". A verdadeira liberdade que Cristo oferece nos desamarra de todas as cadeias do pensamento que nos capturam. Somos livres para participar da vida cívica, mas nunca para dobrar nossos joelhos a ela, crendo que a verdadeira libertação virá de um discurso humano. A nossa lealdade e a nossa identidade primárias pertencem ao Reino que não tem fim.
6. Conclusão: Do Poço de Samaria ao Salvador do Mundo
A jornada de fé que se iniciou com uma conversa tensa ao meio-dia culmina em uma das mais belas confissões de fé do Novo Testamento. A transformação começa na própria mulher samaritana. Sua percepção de Jesus evolui dramaticamente: ela o vê inicialmente como "um simples judeu" que quebra as convenções; depois, ao ter sua vida revelada, o reconhece como "um profeta"; e, por fim, sai correndo para a cidade com a pergunta que queimava em seu coração: "Será que porventura não é ele o Cristo?".
Essa faísca de fé incendeia toda a comunidade. O testemunho de uma mulher marginalizada leva uma cidade inteira a buscar Jesus. E aqui, a fé amadurece de forma exemplar. Os samaritanos declaram à mulher:
"Agora não é mais por causa do que você falou que nós cremos, mas porque nós mesmos ouvimos e sabemos que ele é verdadeiramente o Salvador do mundo."
Eles passaram da fé de segunda mão para uma convicção pessoal e direta. Sua declaração final transcende todas as barreiras. Eles não o chamam de "o salvador dos samaritanos" ou "o Messias dos judeus", mas de uma forma universal e abrangente: "o Salvador do mundo". Este era o "alimento" de Jesus: ver o Reino de Deus irromper onde imperava o pecado, ver a graça alcançar os indignos e testemunhar a sede de uma comunidade inteira ser saciada n'Ele.
A lição do poço de Samaria permanece como um convite a uma conversão contínua. Todos os dias somos confrontados com a escolha do alimento que buscará saciar nossa fome. Podemos continuar no "drive-thru" do mundo, buscando satisfação em ideologias, posses e status, ou podemos nos alimentar da verdadeira comida: fazer a vontade do Pai. É um chamado para abandonar nossas próprias agendas e, em vez de pedir a Deus a vida que queremos, nos abrirmos para receber a vida que Ele sabe que precisamos — uma vida plena, com propósito e eternamente satisfeita n'Ele.
Conclusão Reflexiva
No fim das contas, a pergunta mais importante não é o que pedimos a Deus em nossas orações, mas se estamos dispostos a abandonar o cardápio de nossos próprios desejos para, finalmente, provar o banquete que Ele nos oferece — a profunda e duradoura satisfação de ter a Sua vontade como nosso único e verdadeiro alimento.
A Casa da Rocha. #15 - O que nos alimenta? - Zé Bruno - Quem é Jesus?. Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2r6LTiR1pwo. Acesso em: 26/08/2025.