1. NORMAS DE DIREITO PENAL
O estudo da aplicação da norma no tempo exige, primeiramente, a distinção clara entre Direito Penal e Direito Processual Penal. No âmbito do Direito Penal, a regra fundamental que rege a aplicação da lei no tempo é o princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa.
Este princípio, elevado à categoria de garantia fundamental, encontra-se consagrado na Constituição Federal (art. 5º, XL) e no Código Penal (art. 2º, parágrafo único).
Art. 5º, XL, da CF: "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;"
Dessa máxima decorrem duas regras essenciais:
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Lei Penal Posterior Favorável ao Réu (Novatio Legis in Mellius): A lei que de alguma forma beneficia o réu (seja diminuindo a pena, alterando a prescrição, ou descriminalizando a conduta) retroage para alcançar fatos ocorridos antes de sua vigência.
- Exemplo: A modificação no art. 109, VI, do Código Penal que aumentou o prazo de prescrição de 2 para 3 anos, nos casos em que a pena é inferior a 1 ano. Se a lei posterior for mais benéfica, ela retroage; se for mais gravosa, ela não retroage.
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Lei Penal Posterior Desfavorável ao Réu (Novatio Legis in Pejus): A lei que, de qualquer forma, prejudica o réu (aumentando a pena, tornando a ação mais restritiva, ou agravando o regime) não retroage e só se aplica a fatos cometidos após a sua entrada em vigor.
É essa regra fundamental da irretroatividade da lei penal desfavorável que marca a principal diferença em relação ao Direito Processual Penal, que será abordado na sequência.
2. NORMAS DE DIREITO PROCESSUAL PENAL
Enquanto o Direito Penal se pauta pela irretroatividade da lei mais gravosa, o Direito Processual Penal adota, em regra, o princípio da aplicação imediata. No entanto, para que essa regra seja aplicada de forma correta, é crucial que se verifique a espécie da norma processual penal.
A doutrina especializada estabelece uma divisão essencial com base na natureza da norma, pois o tratamento intertemporal (aplicação no tempo) varia conforme o tipo:
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Norma Genuinamente Processual: São aquelas normas que se dedicam exclusivamente a regulamentar procedimentos, a forma dos atos processuais e as técnicas de tramitação do processo. Elas têm como foco a instrumentalidade do processo e não afetam de maneira direta o direito material de liberdade ou o status libertatis do indivíduo. Sua aplicação rege-se pelo princípio da imediatidade (tempus regit actum).
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Norma Processual Material (Mista ou Híbrida): São normas que, embora topograficamente inseridas em um diploma processual (como o Código de Processo Penal), possuem um nítido conteúdo de Direito Material Penal. Um exemplo clássico é a norma que trata da prisão cautelar. Por versarem sobre temas que limitam a liberdade do indivíduo, elas se submetem à regra do Direito Penal, ou seja, retroagem para beneficiar o réu.
A distinção entre essas duas espécies é o que define o tratamento da lei processual penal no tempo, conforme será detalhado no próximo tópico.
2.1. NORMA GENUINAMENTE PROCESSUAL
(O Princípio Tempus Regit Actum e a Norma Genuinamente Processual)
Para as normas genuinamente processuais (aquelas que tratam de procedimentos, atos e técnicas processuais, sem impacto direto no Direito Material), a regra aplicável é o princípio da aplicação imediata, sintetizado pela máxima latina tempus regit actum (o tempo rege o ato).
Este princípio está explicitamente previsto no Código de Processo Penal (CPP):
Art. 2º do CPP: "A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior."
⚠️ Implicações Práticas da Aplicação Imediata: estabelece duas diretrizes cruciais:
- Regulação do Restante do Processo: A lei processual penal nova tem **aplicação desde logo, regulando todos os atos processuais que ainda serão praticados no curso do processo, independentemente da data em que o crime foi cometido.
- Validade dos Atos Anteriores: Os atos processuais que foram validamente praticados sob a égide da lei anterior permanecem válidos e não precisam ser repetidos ou renovados.
Essa regra se opõe à retroatividade da lei penal mais benéfica. No processo penal, mesmo que uma lei nova altere um procedimento de forma aparentemente mais benéfica, ela não impõe a anulação ou a repetição de atos processuais já realizados.
2.1.1. EXTINÇÃO DO PROTESTO POR NOVO JÚRI
Um dos exemplos mais claros e debatidos sobre a aplicação imediata da lei processual penal genuína foi a extinção do Protesto por Novo Júri pela Lei nº 11.689/2008.
O Protesto por Novo Júri era um recurso cabível no Tribunal do Júri na hipótese de o acusado ser condenado a uma pena de reclusão igual ou superior a 20 anos. Sua interposição resultava na realização de um novo julgamento. Com a promulgação da Lei nº 11.689/2008, esse recurso sui generis foi abolido do ordenamento jurídico brasileiro.
A extinção gerou uma grande discussão sobre a natureza da norma:
- Corrente Minoritária: Defendia que a norma, por suprimir um direito de defesa, teria natureza mista (processual material) e, portanto, não poderia abranger crimes ocorridos antes da vigência da lei (irretroatividade in pejus).
- Corrente Majoritária (Adotada): Defendeu que a norma era genuinamente processual, pois apenas regulamentava um meio de impugnação (recurso) e o procedimento do Júri. Por ser genuinamente processual, sua aplicação é imediata (o tempus regit actum prevalece).
A jurisprudência e a doutrina majoritária acolheram a segunda corrente, consolidando o entendimento de que a recorribilidade se rege pela lei em vigor na data da publicação da decisão (sentença ou acórdão). Se o recurso foi extinto antes da decisão condenatória, ele não mais existia para o réu, independentemente da data do crime.
EMENTA: Direito Processual Penal. Aplicação da Lei no Tempo. Recurso Extinto. “(...) se lei nova vier a prever recurso antes inexistente, após o julgamento realizado, a decisão permanece irrecorrível, mesmo que ainda não tenha decorrido o prazo para a interposição do novo recurso; se lei nova vier a suprimir ou abolir recurso existente antes da prolação da sentença, não há falar em direito ao exercício do recurso revogado. Se a modificação ou alteração legislativa vier a ocorrer na data da decisão, a recorribilidade subsiste pela lei anterior. Há de se ter em conta que a matéria é regida pelo princípio fundamental de que a recorribilidade se rege pela lei em vigor na data em que a decisão for publicada. (...) No caso em exame, os recorrentes foram condenados pelo Tribunal do Júri de São Paulo em 26 de março de 2010. No ato de interposição do recurso de apelação, formalizaram o pedido alternativo de recebimento da impugnação recursal como “protesto por novo júri”, pleito que não foi acolhido porque esse recurso sui generis fora extinto pela Lei 11.689, que entrou em vigor em 8 de agosto de 2008, antes, portanto, da prolação da sentença penal condenatória. Acolhimento do pedido alternativo de recebimento da apelação como recurso de “protesto por novo júri”, mesmo após o julgamento do recurso de apelação, contra o qual também houve a formalização de recursos de natureza extraordinária. Pretensão insubsistente e intenção de, por via oblíqua, desde logo cassar o acórdão da apelação, cujos fundamentos ainda não estão sob o crivo desta Corte. Agravo regimental ao qual se nega provimento.”
(STF, 2ª Turma, RE 752.988 AgR/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 10/12/2013, Dje 22 31/01/2014).
A decisão reitera que, para o Direito Processual Penal, a nova lei tem vigência imediata e não gera direito adquirido a procedimentos ou recursos revogados. No caso específico, como a Lei nº 11.689/2008 (que extinguiu o Protesto por Novo Júri) entrou em vigor antes da condenação, o recurso não era cabível, aplicando-se integralmente a lei nova.
2.2. NORMA PROCESSUAL MATERIAL (MISTA OU HÍBRIDA)
Segundo a definição doutrinária de Norberto Avena, as normas processuais materiais são caracterizadas por uma duplicidade de conteúdo. Elas não se limitam a regular meros atos processuais, mas também incorporam disposições que afetam diretamente o direito material (como o direito de punir do Estado ou o direito de liberdade do réu).
2.2.1. APLICAÇÃO NO TEMPO
Quando uma nova lei processual penal entra em vigor, a regra geral é o princípio do tempus regit actum (o tempo rege o ato), significando que ela se aplica imediatamente aos processos em curso, respeitando os atos já praticados.
No entanto, quando essa nova lei também carrega um conteúdo de direito material (direito penal), ela esbarra em outra regra fundamental: a irretroatividade da lei penal mais gravosa (a lei penal não retroage, salvo para beneficiar o réu).
Esse conflito—entre a aplicação imediata (processual) e a irretroatividade ou retroatividade benéfica (material)—gera intenso debate doutrinário sobre como a norma mista deve ser aplicada a fatos ocorridos antes de sua vigência.
Conforme destacado por Norberto Avena, existem duas orientações principais que tentam solucionar esse impasse.
1ª Corrente: A Tese da Cisão da Norma (ou fracionamento): aplica o conteúdo material apenas se for benéfico e aplica o conteúdo processual de forma imediata, independentemente de ser benéfico ou não.
2ª Corrente (Prevalente): A Impossibilidade da Cisão. A norma híbrida deve ser tratada como um todo unitário, pois seu conteúdo material e processual está intrinsecamente ligado. A tentativa de "fracionar" a lei criaria uma terceira norma (um tertium genus), uma combinação de duas leis diferentes, o que não é função do Poder Judiciário.
Dessa forma, a aplicação da norma no tempo depende inteiramente da natureza do seu conteúdo material:
- Norma Nova Prejudicial: Se o conteúdo material da nova lei for prejudicial ao réu (mais gravoso), a norma, como um todo, não poderá ser aplicada aos fatos ocorridos antes de sua vigência.
Neste caso, tanto o conteúdo material quanto o conteúdo processual da nova lei são afastados, garantindo a ultratividade da lei anterior (que era mais benéfica) em sua totalidade.
- Norma Nova Benéfica: Por outro lado, se o conteúdo material da nova lei for mais benéfico ao réu, ela deverá retroagir para alcançá-lo, em respeito ao princípio da retroatividade da lei penal benéfica.
2.2.2. MODIFICAÇÃO REALIZADA NO ART. 366 DO CPP
Antes da Lei 9.271/96, o art. 366 do CPP tinha a seguinte redação:
“O processo prosseguirá à revelia do acusado que, citado inicialmente ou intimado para qualquer ato do processo, deixar de comparecer sem motivo justificado.”
Na prática, se um acusado fosse citado por edital (citação ficta) e não comparecesse ao processo, o juiz decretava sua revelia, nomeava um defensor dativo (advogado pago pelo Estado) e o processo continuava seu curso normal até a sentença, mesmo sem a presença do réu.
A nova lei alterou drasticamente esse cenário, estabelecendo:
Art. 366. Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312.
As consequências da não localização do réu citado por edital mudaram de "prosseguimento à revelia" para "suspensão do processo e da prescrição".
A natureza mista (híbrida) do novo art. 366 fica clara ao analisarmos seus dois efeitos principais:
- Conteúdo Processual: A determinação de suspensão do processo. Isso afeta diretamente o andamento dos atos processuais, sendo uma regra de natureza puramente procedimental.
- Conteúdo Material: A determinação de suspensão do curso do prazo prescricional. A prescrição é uma causa de extinção da punibilidade, ou seja, afeta o próprio direito de punir do Estado (jus puniendi). Trata-se, portanto, de direito material (penal).
Adotando a corrente prevalente (a da impossibilidade de cisão), tanto o Supremo Tribunal Federal (STF) quanto o Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmaram o entendimento de que os dois comandos do art. 366 são indivisíveis.
“(...) Citação por edital e revelia: L. 9.271/96: aplicação no tempo. Firme, na jurisprudência do Tribunal, que a suspensão do processo e a suspensão do curso da prescrição são incindíveis no contexto do novo art. 366 CPP (cf. L. 9.271/96), de tal modo que a impossibilidade de aplicar-se retroativamente a relativa à prescrição, por seu caráter penal, impede a aplicação imediata da outra, malgrado o seu caráter processual, aos feitos em curso quando do advento da lei nova. Precedentes. (...)”.
(STF, 1ª Turma, HC 83.864/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 20/04/2004, DJ 21/05/2004).
Conforme explica o professor Norberto Avena, o tribunal considerou que a retroatividade do conteúdo material (suspensão da prescrição) traria prejuízo evidente ao réu. Consequentemente, o conteúdo processual (suspensão do processo) também não poderia ser aplicado, pois só faria sentido em conjunto com a suspensão prescricional.
A conclusão foi que, para fatos ocorridos antes da Lei 9.271/96, a norma anterior (que previa o prosseguimento do feito à revelia) deveria continuar sendo aplicada (ultratividade da lei antiga).
2.2.3. CRITÉRIOS PARA DIFERENCIAR NORMAS PENAIS MATERIAIS DAS PROCESSUAIS
-
Normas de Natureza Penal (Material): São consideradas normas penais aquelas que afetam diretamente o direito de punir (jus puniendi) ou o direito de executar a pena (jus executionis) do Estado, bem como o direito de liberdade do indivíduo.
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Normas de Natureza Processual: Aquela que gera efeitos exclusivamente no andamento do processo, sem causar alterações na pretensão punitiva estatal, tem conteúdo meramente processual. Exs.: a que cria novas formas de citação; que trata dos prazos procedimentais ou recursais; que estabelece o número máximo de testemunhas; que dispõe sobre a forma e o momento da oitiva das testemunhas ou do interrogatório do acusado em juízo etc.
- Lei nº 13.491/2017. Essa lei alterou a competência para julgar crimes militares cometidos por policiais militares, transferindo casos (como o de policiais que revendem armas apreendidas) da Justiça Comum para a Justiça Militar (STJ classifica as normas que definem competência como tendo natureza processual).
2.2.4. MUDANÇA NO ESTELIONATO, AÇÃO PENAL
Outro exemplo fundamental de norma mista, que gerou intenso debate jurídico, foi a alteração no crime de estelionato (art. 171 do Código Penal) promovida pela Lei 13.964/2019, o "Pacote Anticrime".
Historicamente, a ação penal para o crime de estelionato era pública incondicionada. Isso significava que o Ministério Público podia iniciar a persecução penal assim que tomasse conhecimento do fato, independentemente da vontade da vítima (salvo raras exceções, como as do art. 182 do CP).
O Pacote Anticrime, no entanto, inseriu o § 5º no art. 171, mudando essa regra:
Art. 171...
§ 5º Somente se procede mediante representação, SALVO SE A VÍTIMA FOR:
I - a Administração Pública, direta ou indireta; II - criança ou adolescente; III - pessoa com deficiência mental; ou IV - maior de 70 anos de idade ou incapaz.
Com isso, a regra geral foi invertida:
- Regra: A ação penal no estelionato passou a ser pública condicionada à representação da vítima.
- Exceção: A ação continua sendo pública incondicionada apenas nos casos de vulnerabilidade listados nos incisos (Administração Pública, menores, incapazes, etc.).
2.2.4.1. NATUREZA HÍBRIDA
Essa mudança é um exemplo clássico de norma híbrida. Ela possui um claro conteúdo processual, pois altera a espécie de ação penal, uma condição de procedibilidade (requisito para o processo existir).
Contudo, ela também possui um inegável conteúdo material (penal), pois a representação da vítima passa a ser uma condição necessária para que o Estado exerça seu jus puniendi (direito de punir). Sem a representação, ocorre a decadência e a punibilidade é extinta. A norma, portanto, interfere diretamente na pretensão punitiva estatal.
Como essa nova norma é mais benéfica ao acusado — pois cria uma nova condição que pode impedir a ação penal —, ela se enquadra na regra constitucional de que a lei penal (e as híbridas com efeito material) deve retroagir para beneficiar o réu.
A grande controvérsia que se instalou foi: até que ponto essa retroatividade alcança os processos que já estavam em andamento?
2.2.4.2. LIMITE DA RETROATIVIDADE
Sendo o § 5º do art. 171 uma norma híbrida e mais benéfica, sua retroatividade foi confirmada. No entanto, o limite dessa retroatividade — especificamente, se ela alcançaria processos onde a denúncia já havia sido oferecida — gerou uma forte divergência entre o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF).
Inicialmente, ambas as Cortes, em suas primeiras análises, tenderam a concordar pela irretroatividade da norma após o oferecimento da denúncia (a exemplo do HC 203.398 do STF), tratando a mudança como puramente processual e aplicando a regra do art. 2º do CPP (tempus regit actum).
Contudo, a discussão amadureceu, e as posições se tornaram antagônicas, consolidando-se da seguinte forma:
- A Posição do STJ (Não Retroage):
O STJ firmou a tese de que a nova regra (exigência de representação) seria um ato processual. Como tal, ela não retroagiria para atingir processos em que a denúncia já tivesse sido oferecida.
Para o tribunal, o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público (que, à época, era o titular da ação incondicionada) representaria um ato jurídico perfeito, não podendo ser invalidado por uma lei processual posterior.
Posição do STJ (Info 691): A exigência de representação da vítima no crime de estelionato não retroage aos processos cuja denúncia já foi oferecida.
STJ. 3ª Seção. HC 610201/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 24/03/2021.
- A Posição do STF (Retroage):
O STF, por outro lado, mudou seu entendimento inicial. A 2ª Turma e, posteriormente, o Tribunal Pleno passaram a classificar a norma como híbrida (penal e processual), afastando a regra do tempus regit actum.
Ao reconhecer o forte componente de direito material (penal) da norma — pois ela afeta o jus puniendi estatal —, o STF aplicou o princípio constitucional da retroatividade da lei penal mais benéfica (art. 5º, XL, da CF).
A Corte decidiu que a exigência de representação deve retroagir para beneficiar o réu em qualquer fase do processo, desde que ainda não tenha ocorrido o trânsito em julgado.
Posição do STF (Info 1023): A alteração (...) deve ser aplicada de forma retroativa a abranger tanto as ações penais não iniciadas quanto as ações penais em curso até o trânsito em julgado.
STF. 2ª Turma. HC 180421 AgR/SP, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 22/6/2021.
Essa tese foi confirmada pelo Plenário do STF, pacificando a questão:
HABEAS CORPUS. (...) RETROATIVIDADE DO § 5o DO ART. 171 (...) NORMA DE NATUREZA HÍBRIDA. RETROAÇÃO EM BENEFÍCIO DO ACUSADO. MÁXIMA EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. INC. XL DO ART. 5o DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. NECESSIDADE DE INTIMAÇÃO DA VÍTIMA PARA PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO. (...) ORDEM CONCEDIDA.
(STF, Tribunal Pleno, HC 208817 AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 13/04/2023)
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Conclusão: Atualmente, prevalece a tese do STF. Se um processo de estelionato (sem as exceções do § 5º) estava em curso quando a lei mudou e ainda não transitou em julgado, o juiz deve suspender o feito e intimar a vítima para que ela diga, em prazo decadencial, se deseja ou não representar contra o acusado.
2.2.5. ANPP
Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 anos, o Ministério Público poderá propor ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: (LEI 13.964/19)
A norma que incluiu o acordo de não persecução penal é, segundo entende o Supremo Tribunal Federal, de natureza híbrida, possuindo conteúdo de direito material e processual penal. Como consequência, deve-se conjugar o princípio da retroatividade da lex mitior (lei penal benéfica) com o princípio do tempus regit actum.
Em um primeiro momento, entendeu o STF e o STJ ser possível a aplicação retroativa do acordo de não persecução penal, desde que não recebida a denúncia.
Posteriormente, contudo, a Corte passou a entender pela possibilidade de aplicação retroativa do art. 28-A do CPP, mesmo que já tenha sido proferida sentença condenatória. De todo modo, a matéria está afeta ao Plenário do STF, no julgamento do HC 185.913, tendo o Min. Gilmar Mendes (Relator), Edson Fachin e Dias Toffoli.
2.2.6. OUTRAS NORMAS MISTAS
- Lei 8.884/94, que alterou o art. 312 do CPP, possibilitando a prisão preventiva como garantia da ordem econômica;
- Lei 9.271/96, que alterou o art. 366 do CPP, permitindo a suspensão do processo e do curso do prazo prescricional, bem como a prisão preventiva do acusado e a produção antecipada de provas, caso o réu citado por edital não compareça ao feito nem constitua procurador;
- Lei no 12.403/11, que trouxe a previsão de medidas cautelares diversas da prisão no art. 319 do CPP, o que fez com que a prisão preventiva se tornasse medida de extrema ou última ratio (art. 282, § 6, CPP), exigindo assim a revisão judicial de todas as prisões desta natureza decretadas até o advento da lei em tela, as quais somente poderiam ser mantidas se não fosse cabível a sua substituição por outra medida cautelar;
- Lei no 13.718/18, que alterou o art. 225 do Código Penal, estabelecendo como regra e sem exceção a ação penal pública incondicionada nos crimes contra a dignidade sexual.
2.3. HETEROTOPIA
É um fenômeno que surge quando uma norma tem natureza diversa do diploma legal em que ela está veiculada. Ex. uma norma de direito material prevista no código de processo penal.
Exemplos de disposições heterotópicas elencados pelo professor Norberto Avena :
- O direito ao silêncio assegurado ao réu em seu interrogatório, a despeito de sua previsão no Código de Processo Penal (art. 186), possui caráter nitidamente assecuratório de direitos (material).
- As normas gerais que disciplinam a competência da Justiça Federal, sem embargo de estarem incorporadas ao art. 109 da Constituição Federal, possuem natureza evidentemente processual.
⚠️ ATENÇÃO: As normas heterotópicas estão sujeitas à retroatividade (lei posterior mais benéfica) e à ultratividade (lei anterior mais benéfica).
Matéria: Direito Processual Penal | Assunto: Noções Introdutórias | Subassunto: Aplicação da Lei Processual | Banca: CEBRASPE | Ano: 2019 | Órgão: PC-AL | Cargo: Escrivão de Polícia
Em relação ao processo penal e ao disposto na Lei n.º 9.099/1995, julgue o item subsequente.
Lei nova mais benéfica, quando modifica procedimentos no processo penal, retroage e impõe a renovação dos atos já praticados.
Matéria: Direito Processual Penal | Assunto: Noções Introdutórias | Subassunto: Aplicação da Lei Processual | Banca: CEBRASPE | Ano: 2023 | Órgão: MPE-SC | Cargo: Promotor de Justiça Substituto
No que diz respeito à norma processual penal, aos sistemas processuais penais e à investigação criminal, julgue o item subsequente.
No ordenamento jurídico brasileiro, em regra, a lei processual penal será aplicada com fulcro no princípio do tempus delicti.
Matéria: Direito Processual Penal | Assunto: Noções Introdutórias | Subassunto: Aplicação da Lei Processual | Banca: CEBRASPE | Ano: 2021 | Órgão: MPE-SC | Cargo: Promotor de Justiça Substituto
Julgue o item a seguir, referentes ao direito processual penal.
De acordo com as normas de direito intertemporal estabelecidas pelo Código de Processo Penal, se sobrevier nova lei processual no curso do processo criminal, deverão ser repetidos os atos processuais praticados antes do início da sua vigência, caso estejam em desconformidade com o novo diploma.
Matéria: Direito Processual Penal | Assunto: Noções Introdutórias | Subassunto: Aplicação da Lei Processual | Banca: CEBRASPE | Ano: 2022 | Órgão: PC-RJ | Cargo: Delegado
Em janeiro de 2017, policiais militares em serviço apreenderam fuzis e revenderam para traficantes de drogas, de modo que foi instaurado inquérito para apurar crime de comércio ilegal de arma de fogo (art. 17, caput, da Lei n.º 10.826/2003). Considerando essa situação hipotética, assinale a opção correta com base no advento da Lei n.º 13.491/2017 e na jurisprudência majoritária do Superior Tribunal de Justiça.
GUIA DE ESTUDOS
1. Qual é o princípio fundamental que rege a aplicação da lei penal no tempo e quais são suas duas regras decorrentes?
O princípio fundamental é o da irretroatividade da lei penal mais gravosa.
Dele decorrem duas regras:
a lei posterior favorável ao réu (Novatio Legis in Mellius) retroage para alcançar fatos passados,
enquanto a lei posterior desfavorável ao réu (Novatio Legis in Pejus) não retroage, aplicando-se apenas a fatos futuros.
2. Como o princípio da aplicação imediata (tempus regit actum) afeta os processos penais em andamento quando uma nova lei processual entra em vigor?
De acordo com o princípio da aplicação imediata, a nova lei processual passa a regular todos os atos que ainda serão praticados no processo, independentemente da data do crime. Contudo, os atos processuais já realizados sob a vigência da lei anterior permanecem válidos e não precisam ser refeitos.
3. Qual é a diferença essencial entre uma norma genuinamente processual e uma norma processual material (mista ou híbrida)?
A norma genuinamente processual regula exclusivamente procedimentos e atos processuais, sem afetar o direito de liberdade.
Já a norma processual material (mista ou híbrida), embora inserida em diploma processual, possui conteúdo de direito penal, impactando diretamente o jus puniendi do Estado ou o status libertatis do réu.
4. Por que a extinção do "Protesto por Novo Júri" foi considerada uma alteração de norma genuinamente processual pela corrente majoritária?
A corrente majoritária entendeu que a norma era genuinamente processual porque apenas regulamentava um meio de impugnação (recurso) e o rito do Júri, sem afetar o direito material do réu. Assim, a recorribilidade é regida pela lei em vigor na data da publicação da decisão, e não na data do crime.
5. Explique a corrente prevalente sobre a aplicação de normas mistas no tempo, conhecida como "Impossibilidade da Cisão".
A corrente da "Impossibilidade da Cisão" defende que a norma híbrida deve ser tratada como um todo unitário, pois seus conteúdos material e processual são intrinsecamente ligados. Sua aplicação no tempo é determinada integralmente pelo seu conteúdo material: se for prejudicial ao réu, não retroage; se for benéfica, retroage.
6. Por que a alteração do artigo 366 do CPP, promovida pela Lei 9.271/96, é um exemplo clássico de norma mista ou híbrida?
A alteração do art. 366 do CPP é uma norma mista porque possui um conteúdo processual (a suspensão do processo) e um conteúdo material (a suspensão do curso do prazo prescricional). A prescrição é uma causa de extinção da punibilidade, afetando diretamente o direito de punir do Estado.
7. Como a jurisprudência decidiu aplicar a nova redação do art. 366 do CPP a fatos ocorridos antes da Lei 9.271/96?
A jurisprudência firmou o entendimento de que a nova redação do art. 366 do CPP não poderia retroagir. Como a suspensão da prescrição era prejudicial ao réu (conteúdo material), a norma como um todo foi afastada para fatos anteriores, mantendo-se a aplicação da lei antiga (ultratividade), que previa o prosseguimento do feito à revelia.
8. Qual foi a mudança introduzida pela Lei 13.964/2019 ("Pacote Anticrime") na ação penal do crime de estelionato (art. 171 do CP)?
A lei alterou a regra geral da ação penal no estelionato, que passou de pública incondicionada para pública condicionada à representação da vítima. A ação penal pública incondicionada foi mantida apenas como exceção para casos de vítimas vulneráveis, como a Administração Pública, crianças, adolescentes e idosos.
9. Qual foi o entendimento final do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a retroatividade da exigência de representação no crime de estelionato?
O STF consolidou a tese de que a norma que exige representação é híbrida e mais benéfica, devendo, portanto, retroagir. Essa retroatividade alcança todos os processos em curso que ainda não transitaram em julgado, sendo necessária a intimação da vítima para que se manifeste sobre o desejo de representar.
10. Defina o fenômeno da "heterotopia" e dê um exemplo mencionado no texto.
Heterotopia é o fenômeno que ocorre quando uma norma possui natureza diversa do diploma legal em que está inserida. Um exemplo é o direito ao silêncio do réu (art. 186 do CPP), que, apesar de estar no Código de Processo Penal, possui caráter de direito material.
DISCURSIVAS PARA PRÁTICA
- Discorra sobre os princípios da irretroatividade da lei penal mais gravosa e da aplicação imediata da lei processual penal (tempus regit actum), explicando por que essa distinção é crucial para a aplicação da lei no tempo.
- Analise a controvérsia sobre a extinção do "Protesto por Novo Júri", detalhando os argumentos da corrente minoritária (que defendia a natureza mista da norma) e da corrente majoritária (que a considerou genuinamente processual).
- Explique detalhadamente a teoria da "Impossibilidade da Cisão" para normas híbridas, utilizando como exemplos práticos as alterações no art. 366 do CPP (suspensão do processo) e no art. 171 do Código Penal (ação penal no estelionato).
- Compare as posições divergentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a retroatividade da exigência de representação no crime de estelionato. Quais foram os fundamentos jurídicos para a decisão final do STF, que considerou a norma retroativa até o trânsito em julgado?
- Desenvolva o conceito de normas processuais materiais (mistas ou híbridas), citando e explicando ao menos três exemplos de normas com essa natureza mencionados no texto-base, além daquelas relativas ao art. 366 do CPP e ao crime de estelionato.