1. Introdução: A Necessidade de uma Narrativa Ordenada para a Fé

O Evangelho de Lucas se inicia não com um milagre ou uma parábola, mas com uma declaração de método, um prefácio que revela a intenção cuidadosa por trás de sua escrita. Lucas dirige-se a um certo Teófilo com uma clareza notável sobre seu objetivo:

"Visto que muitos já empreenderam uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram, conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da palavra, igualmente a mim pareceu bem, depois de cuidadosa investigação de tudo desde a sua origem, dar-lhe por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem, para que você tenha plena certeza das verdades em que foi instruído." (Lucas 1:1-4)

Essa busca por uma "exposição em ordem" serve como um poderoso contraponto a uma armadilha comum na jornada espiritual de muitos: a tendência de consumir as Escrituras de maneira fragmentada. Com frequência, o contato com a Palavra se dá por meio de "textos esparsos e deslocados", versículos pinçados durante uma pregação ou estudo temático, sem a devida conexão com o contexto maior. Essa abordagem é semelhante a entrar em uma sala de cinema no meio do filme; é possível admirar uma cena ou outra, mas a trama principal, as motivações dos personagens e o desfecho da história se perdem, gerando confusão e interpretações equivocadas.

Uma vida cristã desenvolvida sobre fragmentos corre o risco de se tornar superficial. A verdadeira profundidade da espiritualidade, da devoção, da edificação pessoal e da missão depende diretamente da compreensão da "ideia global e ordenada" que Deus revela em Sua Palavra. As Escrituras não são uma "caixinha de promessas" ou um "realejo" de onde se retiram pensamentos aleatórios para o dia. São uma narrativa coesa, com começo, meio e fim, que revela o plano redentor de Deus para a humanidade. Entender essa história em sua totalidade é o que nos dá a "plena certeza" que Lucas tanto desejava para seu amigo Teófilo.


2. "Meu Caro Amigo Teófilo": O Propósito e o Destinatário do Evangelho de Lucas

No centro da empreitada de Lucas está uma pessoa: Teófilo. Este nome, que abre tanto o Evangelho quanto o livro de Atos dos Apóstolos, revela muito sobre o propósito da obra. "Teófilo" vem do grego e significa "amigo de Deus" (Theos = Deus; philos = amigo, amor). Embora alguns sugiram que seja um título simbólico para todos os crentes, a maioria dos estudiosos concorda que se refere a uma pessoa real, um amigo a quem Lucas desejava instruir profundamente.

A identidade de Teófilo, inferida a partir do texto, é crucial. Ele era, muito provavelmente, um gentio — um grego ou romano, e não um judeu. Era um homem que havia recebido as primeiras notícias sobre Jesus, talvez de forma desordenada, e buscava um entendimento mais profundo. A forma de tratamento "excelentíssimo Teófilo" é um forte indicador de seu status social, pois era uma saudação reservada a pessoas nobres, governantes ou de grande destaque na sociedade. Teófilo não era apenas um recém-convertido, mas também um indivíduo de posses e influência.

Essa posição social nos leva a uma conclusão prática: Teófilo foi, possivelmente, o patrocinador da obra de Lucas. Naquela época, a produção de um livro era um processo caro. O papiro, a tinta e o tempo necessário para a pesquisa e a escrita exigiam recursos significativos. O Evangelho de Lucas é um dos livros mais longos do Novo Testamento, e, somado a Atos, representa um volume literário imenso. É provável que este "homem nobre" tenha financiado o projeto, pedindo a Lucas: "Escreva tudo para mim, de forma ordenada".

Em resposta a esse pedido, Lucas não agiu como um mero compilador. Ele se apresentou como um investigador diligente, que fez uma "acurada investigação" dos fatos, entrevistou testemunhas oculares e percorreu os lugares dos acontecimentos. Seu objetivo era claro e explícito: transformar a fé incipiente de seu amigo, baseada em relatos ouvidos, em uma convicção sólida e bem fundamentada, para que ele tivesse "plena certeza das coisas" que havia aprendido.


3. João Batista: O Sacerdote que Nasceu para o Templo, mas Escolheu o Deserto

Para dar a Teófilo a "plena certeza" que prometeu, Lucas inicia sua narrativa ordenada não com Jesus, mas com Seu precursor: João Batista. A história de seu nascimento, detalhada a partir do quinto versículo do primeiro capítulo, é fundamental para entender a transição que estava prestes a ocorrer.

A linhagem de João era impecável do ponto de vista sacerdotal. Seu pai, Zacarias, era um sacerdote em serviço ativo no templo, pertencente ao turno de Abias. Sua mãe, Isabel, era também descendente da linhagem de Arão. O texto os descreve como um casal exemplar: "ambos eram justos diante de Deus, vivendo de forma irrepreensível em todos os preceitos e mandamentos do Senhor" (Lucas 1:6).

Dentro da estrutura social e religiosa de Israel, o destino de João parecia selado desde o nascimento. Como filho de sacerdote da tribo de Levi, sua vida seria dedicada ao serviço no templo. Seu lugar natural era junto ao altar, aprendendo os rituais e perpetuando a tradição de sua família. A promessa feita pelo anjo a Zacarias reforçava essa expectativa de uma vida de grande propósito, afirmando que João seria "grande diante do Senhor" e atuaria "no espírito e poder de Elias" para preparar o caminho do Messias.

Contudo, é aqui que Lucas apresenta uma virada desconcertante na narrativa. Após descrever o contexto político e religioso da época, ele revela onde a ação divina de fato acontece:

"...sendo sumos sacerdotes Anás e Caifás, a palavra de Deus veio a João, filho de Zacarias, no deserto." (Lucas 3:2)

Essa simples frase é carregada de significado. A Palavra de Deus, a revelação profética que prepararia a chegada do Rei, não veio no centro do poder religioso — o Templo de Jerusalém. Ela não foi entregue aos sumos sacerdotes legalmente constituídos, Anás e Caifás. Em vez disso, ela se manifestou em um lugar de isolamento, um ambiente marginal e inóspito. O homem que nasceu para servir no templo foi chamado para ministrar no deserto, um sinal inequívoco de que Deus estava iniciando algo novo, completamente fora do sistema religioso estabelecido e corrompido.


4. A Palavra de Deus Fora do Sistema: Uma Crítica à Religião e à Política
Publicidade

A decisão de Lucas de situar o chamado de João no deserto é deliberada e contextual. Ele faz questão de listar as autoridades vigentes: no poder político, o Império Romano com Tibério César, Pôncio Pilatos e Herodes; no poder religioso, uma anomalia gritante — Anás e Caifás atuando como "sumos sacerdotes". Essa dualidade no sumo sacerdócio era em si um sintoma da profunda corrupção do sistema, que já não seguia a lei divina de um único sumo sacerdote vitalício, mas se curvava a conluios políticos com Roma. O judaísmo daquela época, com suas novas facções de fariseus, saduceus e escribas, já se distanciava muito da fé descrita no Antigo Testamento.

Neste cenário, a ausência de Deus no templo e sua presença no deserto expõem uma verdade universal sobre a natureza dos sistemas humanos de poder, sejam eles religiosos ou políticos. Ambos operam sob uma lógica assustadoramente similar. A política, com suas ideologias, exige uma militância que defende seus líderes como figuras messiânicas, quase infalíveis. Os erros são justificados, as falhas são negadas, e o seguidor devoto se torna cego, entregando sua consciência ao partido ou ao candidato.

Da mesma forma, a religião institucionalizada frequentemente se desvia de seu propósito. Ela cria uma dependência de ritos, figuras de autoridade, "coberturas espirituais" e estruturas de poder. Por meio da culpa, do medo e da necessidade de mediação humana, ela aprisiona os fiéis, impedindo uma relação direta e genuína com Deus. Em ambos os sistemas, o indivíduo é frequentemente esmagado, "triturado como carne moída", para que a ideologia política ou a instituição religiosa se perpetue.

João Batista, embora nascido e criado para ser parte integrante da elite sacerdotal, não conseguiu se encaixar nesse sistema. Ele olhou para a religião de seu tempo e percebeu que, apesar de ela ostentar "uma placa com o nome de Deus", em seu interior não havia "nada desse Deus" que ele conhecia. Sua ida para o deserto foi, portanto, um ato de ruptura profética, uma declaração de que a verdadeira Palavra de Deus não poderia ser encontrada em meio à corrupção, ao jogo de poder e à hipocrisia do sistema vigente.


5. "Até João, a Lei e os Profetas": A Grande Transição para o Reino de Deus

O ministério de João Batista no deserto não foi apenas um ato de protesto, mas o marco de uma transição cósmica. Ele representa o ponto de inflexão na história da salvação, um "movimento intermediário" entre a antiga aliança e a nova. O próprio Jesus atestou a singularidade de João, declarando que entre os nascidos de mulher, ninguém era maior que ele, embora o menor no Reino de Deus fosse ainda maior (Lucas 7:28). João era o último e o maior dos profetas da antiga ordem, cuja missão era precisamente anunciar o fim daquela era.

Essa ideia é cristalizada em uma das declarações mais radicais de Jesus, registrada por Lucas:

"A Lei e os Profetas duraram até João; desde esse tempo, o evangelho do Reino de Deus vem sendo anunciado, e todos se esforçam para entrar nele." (Lucas 16:16)

A implicação desta frase é profunda e transformadora. O sistema religioso, cerimonial e nacional de Israel, governado pela Lei de Moisés e antecipado pelos Profetas, teve um prazo de validade. Esse prazo se encerrou com o ministério de João. Ele foi a dobradiça sobre a qual a porta da história girou, fechando um capítulo e abrindo outro: o da pregação do Evangelho do Reino de Deus.

Esta verdade confronta diretamente uma mentalidade "veterotestamentária" que persiste em muitas práticas religiosas contemporâneas. A busca incessante pela "unção de Elias", pelo "poder de Josué" ou pela "força de Sansão", bem como o apego a símbolos, objetos e "bugigangas espirituais" — como arcas, candelabros e espadas — representam uma tentativa de reviver um modelo que, segundo as palavras de Cristo, já cumpriu seu propósito.

A mensagem do Evangelho é um chamado para avançar, não para regredir. João Batista não veio para reformar o antigo sistema, mas para anunciar sua substituição. A Bíblia, e especialmente o Novo Testamento, acaba com a religião de rituais e símbolos para inaugurar um relacionamento direto com Deus por meio de Cristo. Portanto, a lição que Lucas ensina a Teófilo, e a nós, é que os cristãos são chamados a seguir a Cristo e o evangelho do Reino, e não a se prenderem aos padrões de uma aliança que já passou.


6. O Sinal da Mudança: O Batismo de Arrependimento e o Fim do Ritualismo

O ministério de João Batista foi o cumprimento literal da profecia de Isaías, que falava de uma "voz que clama no deserto" para "preparar o caminho do Senhor" (Isaías 40:3-5). Sua presença e sua mensagem eram o sinal claro e esperado de que a chegada do Messias era iminente. E o ato central de seu ministério — o batismo — foi a própria ferramenta de transição entre as duas eras.

João pregava um "batismo de arrependimento para remissão dos pecados". Em nossa mentalidade, isso pode parecer algo comum, mas no contexto judaico do primeiro século, era uma prática revolucionária. De acordo com a Lei de Moisés, a remissão dos pecados era um processo complexo, centralizado no templo e dependente do sistema sacrificial. Para obter o perdão, uma pessoa precisava levar uma oferta (um cordeiro, uma pomba), entregá-la a um sacerdote e participar de um ritual específico de expiação. O perdão estava intrinsecamente ligado ao altar, ao sangue do sacrifício e à mediação sacerdotal.

Ao batizar pessoas no Rio Jordão, oferecendo remissão de pecados com base unicamente no arrependimento, João estava efetivamente bypassando todo o sistema do templo. Sua ação era uma declaração implícita de que os rituais e sacrifícios haviam perdido sua eficácia. Para a elite religiosa, isso era mais do que uma afronta; era uma blasfêmia que ameaçava toda a sua estrutura de poder e controle.

Portanto, João Batista não era apenas um profeta; ele era o sinal evidente de que a "agonizante religião do Antigo Testamento estava morrendo". Sua prática apontava para o fim de uma fé baseada em um lugar geográfico, em rituais e em uma casta sacerdotal, e anunciava a chegada de um Reino acessível a todos que se arrependessem, um Reino de Deus que não estava confinado a estruturas humanas. Ao explicar isso a Teófilo, Lucas deixava claro por que a mais importante mensagem da história não veio do centro do poder religioso, mas de uma voz solitária no deserto.


A Casa da Rocha. #01 - João e a Palavra no Deserto - Zé Bruno - Meu Caro Amigo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BgTHamzVKGk&list=PLln4KGoeU_UlYAKpYT6dSHyl8oNMkDcO9&index=1. Acesso em: 03/09/2025.

Avatar de diego
em 24/10/2025
Matéria: Bíblia
Artigo

0 Comentários

Nenhum comentário. Seja o primeiro a comentar!

Você precisa entrar para comentar.
Pergunte à IA