1. Contexto Fático
Em julho de 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, o navio pesqueiro brasileiro "Changri-lá" foi afundado por um submarino alemão (U-199) no mar territorial brasileiro, próximo à costa de Cabo Frio. Os netos de um dos tripulantes ajuizaram ação de indenização por danos morais e materiais contra a República Federal da Alemanha, com fundamento no artigo 109, inciso II, da Constituição Federal de 1988:
Art. 109, II, CF/88 – Compete aos juízes federais processar e julgar as causas entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e Município ou pessoa domiciliada ou residente no País.
2. Decisão de Primeiro Grau
O juiz federal extinguiu o processo sem resolução de mérito, alegando impossibilidade jurídica do pedido, sob o argumento de que não seria permitida a responsabilização civil de um país estrangeiro por ato de guerra.
3. Entendimento do Supremo Tribunal Federal
Em 2021, o STF firmou entendimento inovador no julgamento do ARE 954858/RJ, com repercussão geral reconhecida (Tema 944), sob relatoria do Ministro Edson Fachin:
Tese fixada: "Os atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros em violação a direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição."
Esse precedente estabeleceu que a imunidade de jurisdição não se aplica a atos de império que violem o direito internacional da pessoa humana, especialmente quando praticados em território brasileiro.
4. Conceito de Imunidade de Jurisdição
A imunidade de jurisdição é a prerrogativa de Estados estrangeiros, organizações internacionais e seus órgãos de não serem submetidos ao julgamento por tribunais de outro Estado sem consentimento. No Brasil, essa matéria é regida por normas de direito internacional costumeiro, pois o país não aderiu à Convenção das Nações Unidas sobre Imunidade de Jurisdição dos Estados.
5. Teorias Aplicáveis
a) Teoria da Imunidade Absoluta
Defende que o Estado estrangeiro possui imunidade total, só podendo ser julgado por outro Estado mediante renúncia expressa. Fundamenta-se no princípio da igualdade entre Estados: par in parem non habet jurisdictionem.
b) Teoria da Imunidade Relativa
Distingue entre atos de império (exercício da soberania) e atos de gestão (atividade privada). Apenas os atos de império estariam protegidos pela imunidade. Essa teoria é a que prevalece atualmente na jurisprudência brasileira.
6. Derrotabilidade da Norma Jurídica
O STF aplicou a teoria da derrotabilidade normativa, segundo a qual uma norma jurídica pode deixar de ser aplicada em situações excepcionais, mesmo que seus pressupostos estejam presentes. No caso, a norma da imunidade foi superada diante da violação a direitos humanos.
7. Fundamentos Internacionais Invocados
- Convenção da Haia (1907): Proteção a civis e embarcações de pesca durante conflitos armados.
- Estatuto do Tribunal de Nuremberg (art. 6, “b”): Reconhece como crimes de guerra o assassinato de civis, inclusive em alto-mar.
- Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 6): Garante o direito à vida como inerente à pessoa humana.
- Constituição Federal (art. 4º, II): Estabelece a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais do Brasil.
8. Mudança de Entendimento do Superior Tribunal de Justiça
O STJ anteriormente adotava a imunidade absoluta para atos de guerra, como no RO 60/RJ (2015). Contudo, após o julgamento do STF, houve superação desse entendimento (overruling), passando a adotar a tese de que atos ilícitos violadores de direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição:
STJ – RO 109-RJ, julgado em 07/06/2022 (Informativo 740): Acompanhou o entendimento do STF, reconhecendo a possibilidade de responsabilização civil da Alemanha.