O Direito ao Livre Acesso do Policial em Serviço

A interação entre normas internas de estabelecimentos comerciais e as prerrogativas legais das forças de segurança pública é um tema que frequentemente gera debates e, por vezes, conflitos desnecessários. Recentemente, observou-se um caso emblemático em São Luís, no Maranhão, onde policiais militares, devidamente fardados e em serviço, foram impedidos de adentrar uma padaria.

A justificativa apresentada pelos responsáveis pelo estabelecimento baseou-se em uma premissa de desconforto comercial:

"Armas assustam os clientes.". Embora a preocupação com o bem-estar da clientela seja legítima sob a ótica da gestão comercial, tal argumento não encontra respaldo jurídico quando confrontado com a legislação federal vigente. A recusa de acesso a agentes de segurança pública em serviço constitui um equívoco legal grave.

O Amparo Legal: Lei 10.826/03 e Decreto 11.615/2023

A legislação brasileira é taxativa quanto ao porte de arma de fogo por parte dos integrantes das forças policiais. O Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/03), em conjunto com regulamentações recentes como o Decreto 11.615/2023, assegura o porte funcional pleno. Isso significa que o policial, quando está no exercício de suas funções (em serviço), possui a prerrogativa do livre acesso armado a locais sujeitos à fiscalização policial. Esta categoria de locais é ampla e abrange:

  • Padarias;
  • Bares e restaurantes;
  • Supermercados;
  • Lojas de varejo;
  • Estabelecimentos comerciais em geral.

A presença da arma de fogo, neste contexto, não é uma escolha pessoal do agente ou um acessório opcional, mas sim um instrumento de trabalho obrigatório e indissociável da função de garantir a ordem pública e a segurança da população, inclusive a dos clientes presentes no estabelecimento.

A Supremacia da Lei sobre Regras Internas

É fundamental compreender que regulamentos internos de empresas privadas não possuem força normativa para se sobrepor à legislação federal. As regras de uma empresa ("direito de admissão" ou "proibição de armas") aplicam-se a civis ou a situações específicas regulamentadas, mas não podem impedir a atuação do Estado representado pela figura do policial em serviço.

Portanto, qualquer tentativa de impedir a entrada de um policial fardado e em serviço sob a alegação de normas da casa configura um ato ilegal. A lei garante que:

"Policial EM SERVIÇO tem porte pleno, livre e funcional, podendo entrar armado em QUALQUER local sujeito à fiscalização policial. Ninguém pode impedir."

As discussões sobre restrições de porte em estabelecimentos privados geralmente se limitam a situações envolvendo policiais de folga, onde a legislação permite certas nuances e regulamentações estaduais específicas. Contudo, para o agente em serviço, a liberdade de trânsito e acesso é absoluta e necessária para o cumprimento do dever legal.


A Distinção Jurídica do Policial de Folga

Enquanto o acesso do policial em serviço é resguardado de forma ampla pela legislação federal, o cenário torna-se juridicamente mais complexo quando se trata do agente fora de escala, ou seja, de folga. É nesta circunstância específica que reside a maior parte das discussões judiciais e administrativas, especialmente em locais de grande aglomeração pública.

Diferentemente do porte funcional em serviço, o porte do policial de folga em ambientes de lazer pode ser objeto de regulamentações estaduais específicas. No entanto, a jurisprudência tem se inclinado a proteger o direito de defesa do agente de segurança, mesmo em seus momentos de lazer, salvo exceções muito bem fundamentadas.

Shows, Boates e Eventos Privados

Um dos cenários mais comuns de conflito envolve o acesso de policiais armados a casas noturnas, shows e eventos privados. Promotores de eventos frequentemente argumentam que a presença de armas e o consumo de álcool nesses ambientes aumentam o risco de incidentes.

No estado do Ceará, por exemplo, houve uma tentativa judicial por parte de organizadores de eventos de proibir a entrada de policiais armados que não estivessem em serviço. O argumento baseava-se na prevenção de abusos e na segurança coletiva.

A resposta do Judiciário, contudo, reforçou a prerrogativa da categoria. O Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) negou o pedido de proibição, estabelecendo um entendimento crucial: o comportamento inadequado de indivíduos isolados não pode servir de base para restringir direitos de toda uma classe profissional.

"Excessos individuais não justificam restringir toda a categoria."

TJ-CE – Apelação Cível nº 0206833-10.2020.8.06.0001. Julgamento em 31/05/2021.

Esta decisão sinaliza que a presunção deve ser a da legalidade e da responsabilidade do agente público. O policial, mesmo de folga, mantém seu dever de agir em situações de flagrante delito e risco à sociedade, o que justifica a manutenção do porte de arma. A restrição genérica e prévia, portanto, tende a ser vista como uma medida desproporcional pelos tribunais.


Jurisprudência em Ambientes Controlados

Além dos locais de entretenimento, existem ambientes onde a segurança é estruturalmente mais rígida, exigindo uma análise jurídica diferenciada. Agências bancárias e instituições de ensino são exemplos claros onde o conflito entre normas internas de segurança e o porte de arma policial é frequente, gerando decisões judiciais que balizam o comportamento das instituições.

Agências Bancárias: Farda e Identificação como Critérios

O sistema bancário possui um aparato de segurança próprio, regulado por legislação federal específica que exige portas giratórias e controle de metais. Nesse cenário, a jurisprudência estabeleceu uma diferenciação clara baseada na ostensividade da função policial.

1. Policial Fardado e em Serviço Quando o policial está fardado e devidamente identificado, o entendimento é de que o impedimento de sua entrada na agência bancária é ilícito. A lógica é a mesma aplicada ao comércio em geral: o Estado não pode ser barrado no exercício de sua função. A recusa injustificada pode acarretar consequências severas para a instituição financeira.

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Há precedentes judiciais que condenam bancos ao pagamento de indenização por danos morais ao policial constrangido, e casos extremos onde funcionários foram responsabilizados criminalmente.

"Policial fardado e identificado → proibição é ilícita e gera dano moral."

TJ-PA – Apelação nº 0005341-04.2009.8.14.0201. Julgamento em 05/10/2015.

"Gerente e vigilante já foram até presos após impedir policial armado."

TJ-SC – Apelação Cível nº 2014.083765-1. Julgamento em 11/08/2015.

2. Policial de Folga e sem Farda Por outro lado, quando o policial está de folga, à paisana e atuando como um cliente comum, a jurisprudência tende a reconhecer a legitimidade das normas de segurança do banco. Nesse caso, o entendimento é que a instituição pode restringir a entrada armada para garantir a segurança do recinto, uma vez que o agente não está em missão oficial.

"Policial de folga, sem farda → banco pode proibir."

TJ-PB – Processo nº 0000551-78.2015.8.15.0351. Julgamento em 17/07/2018.

Universidades e Escolas: A Autonomia Institucional

No âmbito educacional, a discussão é ainda mais sensível e carece de um consenso absoluto. O ambiente acadêmico possui características próprias e, muitas vezes, invoca sua autonomia administrativa para regular o convívio interno.

Atualmente, o entendimento predominante é que instituições de ensino superior e escolas podem estabelecer restrições ao porte de armas em seus campi por meio de Regimento Interno. A justificativa reside na natureza do ambiente escolar, que deve ser preservado de ostensividade bélica desnecessária, salvo em situações de ocorrência policial ativa.

"Tema sem consenso. Instituições podem restringir com base em Regimento Interno."

TJ-DF – Processo nº 0720934-39.2018.8.07.0000. Julgamento em 12/11/2019.


A Exceção dos Fóruns e Tribunais

Embora a regra geral assegure o livre acesso do policial em serviço a locais sujeitos à fiscalização, existe um ambiente específico onde a lógica jurídica se inverte: as sedes do Poder Judiciário. Fóruns e Tribunais possuem um regime de segurança diferenciado, pautado pela necessidade de garantir a integridade de juízes, promotores, advogados e partes envolvidas em litígios.

Neste contexto, a autonomia administrativa dos tribunais prevalece, amparada por orientações superiores.

A Recomendação do CNJ e o Entendimento do STJ

Diferentemente de estabelecimentos comerciais ou bancários, os Fóruns seguem diretrizes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A jurisprudência consolidada, inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), estabelece que os Tribunais possuem competência para restringir o ingresso de pessoas armadas em suas dependências.

O ponto crucial desta exceção é que ela pode alcançar até mesmo policiais fardados e em serviço. A restrição é válida desde que esteja formalizada mediante Portaria interna do Tribunal.

Isso significa que, se houver uma norma interna do Fórum determinando que apenas a escolta de presos ou a segurança institucional do próprio tribunal pode portar armas no recinto, o policial militar ou civil que chega ao local para outras diligências deve se submeter a essa regra (como acautelar a arma na entrada).

O STJ validou esse entendimento ao julgar que tais medidas não violam as prerrogativas policiais, mas visam a segurança orgânica dos tribunais:

"Por recomendação do CNJ, os Tribunais podem restringir a entrada de pessoas armadas, inclusive policiais fardados e em serviço, mediante Portaria interna."

STJ – RMS nº 38.090/MS (2012/0105066-0). Julgamento em 10/03/2020.

Conclusão

A análise da legislação e da jurisprudência atual permite traçar um panorama claro:

  1. Regra Geral (Comércio/Serviços): O policial fardado e em serviço tem porte livre. Impedir sua entrada em padarias, mercados ou lojas é ilegal e passível de responsabilização.
  2. Policial de Folga: O porte é garantido, mas pode haver restrições específicas em locais de entretenimento ou agências bancárias (se não identificado), dependendo da legislação estadual e normas internas.
  3. A Grande Exceção: Fóruns e Tribunais têm autonomia para restringir o porte, inclusive de agentes em serviço, visando a segurança judiciária.

Canga Jurídico, https://www.instagram.com/p/DRE9DCzjdII/

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há 21 horas
Matéria: Atividade Policial
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