Contexto Fático: A Operação no Setor Comercial Sul durante a Pandemia
Em 28 de julho de 2021, uma operação conjunta envolvendo o DF LEGAL e a Polícia Militar do Distrito Federal foi realizada no Setor Comercial Sul, em Brasília . A ação tinha como objetivo a retirada de pertences da população em situação de rua que ocupava aquela região . Embora ações de ordenamento urbano sejam prerrogativas da administração pública, as circunstâncias específicas deste caso geraram uma complexa lide judicial que culminou em condenações estatais em diversas instâncias.
A operação ocorreu em um cenário de extrema vulnerabilidade. Primeiramente, o país enfrentava a vigência do estado de emergência em saúde pública decorrente da pandemia de COVID-19 . Somado a isso, o Distrito Federal passava por um período de inverno rigoroso, registrando temperaturas noturnas entre 6° e 8°. A retirada de abrigos e cobertores nessas condições potencializou significativamente os riscos à saúde e à vida dessas pessoas, expondo-as ao perigo de hipotermia .
"A operação realizada durante a pandemia da COVID-19 agravou ainda mais a situação de vulnerabilidade dos autores em situação de rua no Setor Comercial Sul, uma vez que foram retirados bens pessoais como documentos, roupas, medicamentos, cobertores, colchões, barracas, panelas, instrumentos de trabalho, comidas e itens de higiene, sem qualquer alternativa senão a retirada do lugar que estavam."
Além do contexto sanitário e climático adverso, a forma como a operação foi conduzida revelou falhas procedimentais graves. Relatos e apurações judiciais indicaram que não houve notificação prévia aos moradores, nem apresentação de mandado judicial . A ação foi realizada sem a presença de assistentes sociais ou órgãos de assistência social que pudessem oferecer suporte ou alternativas de acolhimento imediato àquelas pessoas .
Um dos pontos centrais da controvérsia foi o tratamento dispensado aos bens apreendidos. A defesa do Distrito Federal alegou, durante o processo, que a operação visava recolher "lixos e bens inservíveis" que ocupavam a área pública . Contudo, a lista de itens retirados incluía objetos essenciais à sobrevivência mínima e à dignidade humana, como documentos de identificação, medicamentos e instrumentos de trabalho .
A ausência de formalidade no ato de apreensão foi determinante para a caracterização da ilicitude. Não foi realizada a listagem dos bens recolhidos, tampouco foi emitido qualquer auto de apreensão . Essa conduta impossibilitou que os proprietários pudessem reaver seus pertences posteriormente, uma vez que, ao serem classificados genericamente como "lixo" pela administração, foram descartados sem critério de individualização .
Essa atuação estatal, desacompanhada de políticas públicas efetivas de moradia e alimentação no momento da abordagem, foi interpretada judicialmente não apenas como uma ação administrativa de limpeza, mas como uma violação de direitos que desconsiderou a condição humana dos afetados .
Aqui está a redação do segundo subtópico do artigo.
A Violação de Direitos Fundamentais e a Falta do Devido Processo Legal
A atuação do Estado, embora legítima na ordenação do espaço urbano, encontra limites intransponíveis na Constituição Federal, especificamente no que tange à dignidade da pessoa humana. No caso do Setor Comercial Sul, a defesa do Distrito Federal argumentou que "os direitos fundamentais não são absolutos" e que deveriam ser ponderados frente a outros direitos, como a ordem urbanística e o patrimônio administrativo . Contudo, o Poder Judiciário rechaçou veementemente essa tese quando confrontada com o "mínimo existencial" dos cidadãos em situação de rua.
A sentença de primeiro grau (Processo n° 0704991-20.2021.8.07.0018 e APELAÇÃO/REMESSA NECESSÁRIA 0704991-20.2021.8.07.0018) destacou que, independentemente da condição social, todos devem ter seus direitos fundamentais respeitados . A retirada de cobertores, remédios e abrigos de pessoas que já vivem em extrema vulnerabilidade foi classificada judicialmente como uma ação "desumana" e "arbitrária" . O tribunal observou que os bens apreendidos, embora rotulados pelo Estado como "lixo" ou "inservíveis", constituíam os únicos recursos de sobrevivência daquelas pessoas em uma sociedade desigual .
"O bom senso dita que o juiz deve levar em conta (...) a extensão do dano (...) sem caráter punitivo. (...) Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto (...) tais situações não são intensas e duradouras a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo."
Nota: No caso concreto, o tribunal entendeu que a situação ultrapassou o mero dissabor, atingindo a dignidade humana.
A Ausência do Devido Processo Legal Administrativo
A ilegalidade da operação não se limitou ao resultado material, mas também à inobservância do devido processo legal administrativo. Para que a administração pública possa apreender bens de particulares, é imprescindível a formalização do ato.
No episódio em questão, ficou comprovada a omissão quanto à lavratura de auto de apreensão . A falta desse documento, que deveria conter a descrição individualizada dos bens recolhidos, impediu que os proprietários exercessem seu direito de defesa ou solicitassem a restituição posterior . A Resolução nº 40/2020 do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) estabelece que o recolhimento de documentos e objetos pessoais configura violação de direitos, infringindo a igualdade e a propriedade .
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) reforçou que é vedado o recolhimento de qualquer bem sem a realização de auto de apreensão, categorização e justificativa legal prévia . A ausência desses procedimentos transformou a ação de ordenamento urbano em um ato de confisco ilegal.
O Descumprimento da Recomendação do Ministério Público
A conduta estatal foi agravada pelo descumprimento deliberado da Recomendação nº 03/2021 do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) . Este documento estabelecia diretrizes claras para abordagens à população de rua, visando garantir um tratamento humanizado. Entre as diretrizes ignoradas, destacam-se:
- Identificação e Urbanidade: Os agentes deveriam portar crachás visíveis e primar pelo respeito absoluto à dignidade humana .
- Proibição de Apreensões Ilegais: A apreensão de documentos e bens pessoais só poderia ocorrer em hipóteses legais estritas e mediante lavratura de auto .
- Registro da Operação: As abordagens deveriam ser filmadas e as imagens preservadas . No caso, a empresa responsável informou que as imagens não foram armazenadas .
- Comunicação Prévia: As operações deveriam ser comunicadas com antecedência ao Ministério Público, ao Conselho Tutelar e à Secretaria de Desenvolvimento Social, para garantir suporte assistencial .
A inobservância dessas regras transformou uma operação administrativa em um ato ilícito, gerando o dever de indenizar tanto individualmente quanto coletivamente .
Responsabilidade Civil do Estado: Danos Materiais e Morais Individuais
A Constituição Federal brasileira adota a teoria da responsabilidade civil objetiva para o Estado. Isso significa que as pessoas jurídicas de direito público respondem pelos danos que seus agentes causarem a terceiros, independentemente de culpa, bastando a comprovação do ato, do dano e do nexo de causalidade.
No caso do Setor Comercial Sul, o Poder Judiciário reconheceu que a ação estatal configurou um ato ilícito, gerando o dever de indenizar tanto as perdas materiais quanto o sofrimento moral infligido aos moradores em situação de rua.
A Reparação pelos Danos Materiais
A comprovação do dano material, em regra, recai sobre quem alega ter sofrido o prejuízo. No entanto, a omissão do Estado em lavrar os autos de apreensão gerou uma situação peculiar: a impossibilidade de os autores provarem documentalmente a posse de cada item recolhido.
O Tribunal entendeu que a falta de individualização dos bens não foi culpa das vítimas, mas negligência do Estado. Por isso, a justiça aceitou como verdadeiras as declarações dos autores sobre os bens perdidos, desde que compatíveis com a realidade de vulnerabilidade social.
"Bens inservíveis é uma avaliação excessivamente subjetiva, pois em uma sociedade com excessiva desigualdade social como é o caso do Brasil o lixo de alguns pode ser o luxo de outros."
Inicialmente, a sentença de primeiro grau havia fixado uma indenização linear de R$ 3.000,00 para cada autor a título de danos materiais. Contudo, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), ao julgar o recurso, ajustou esses valores para evitar o enriquecimento sem causa, determinando o pagamento exato conforme os bens declarados por cada indivíduo.
Os valores variaram conforme a lista de pertences perdidos, que incluía desde itens básicos como roupas, documentos e produtos de higiene, até instrumentos de trabalho e barracas. Por exemplo, indenizações foram fixadas em valores como R$ 342,00, R$ 500,00 e R$ 900,00, dependendo da extensão da perda comprovada. Para os autores que não apresentaram declaração de bens apreendidos nos autos, o pedido de dano material foi julgado improcedente.
A Compensação por Danos Morais
Diferentemente do dano material, o dano moral visa compensar a violação da dignidade, honra e integridade psíquica. [cite_start]O Judiciário considerou que a operação não causou mero aborrecimento, mas sim humilhação e sofrimento intenso, exacerbado pelo contexto da pandemia de COVID-19 e das baixas temperaturas do inverno.
A sentença condenou o Distrito Federal ao pagamento de R$ 40.000,00 (quarenta mil reais) para cada autor pessoa física. Esse valor foi mantido em segunda instância, sob a justificativa de atender aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, além de cumprir uma função pedagógica para desestimular novas condutas ilícitas por parte do Estado.
"Não se trata de uma atribuição de um preço para a dor ou o sofrimento, mas um meio para amenizar, em parte, as consequências do dano extrapatrimonial vivenciado pela parte ofendida."
É importante notar que a indenização por danos morais foi excluída para três autores específicos que não conseguiram demonstrar que foram alvos diretos da apreensão de bens, uma vez que não sofreram os efeitos da operação da mesma forma que os demais.
Dano Moral Coletivo: A Lesão aos Valores da Sociedade
Para além dos prejuízos individuais sofridos por cada morador de rua que teve seus bens subtraídos, o Poder Judiciário identificou uma lesão mais ampla, que atingiu o patrimônio moral de toda a coletividade. O conceito de dano moral coletivo não se confunde com a soma das dores individuais; ele ocorre quando há uma violação injustificável de valores fundamentais compartilhados pela sociedade, gerando um sentimento de repulsa e indignação na consciência coletiva.
No caso do Setor Comercial Sul, a conduta do Estado foi considerada uma ofensa grave à dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República. Ao realizar uma operação com características "higienistas" — termo utilizado para descrever ações focadas na limpeza social em detrimento do cuidado humano — o Ente Público desrespeitou não apenas as vítimas diretas, mas a própria ordem jurídica e a confiança que a sociedade deposita nas instituições públicas.
"O dano moral coletivo, compreendido como o resultado de uma lesão à esfera extrapatrimonial de determinada comunidade, ocorre quando a conduta agride, de modo totalmente injusto e intolerável, o ordenamento jurídico e os valores éticos fundamentais da sociedade em si considerada, a provocar repulsa e indignação na consciência coletiva."
A Teoria do Desestímulo e o Caráter Punitivo
Um dos pontos centrais para a manutenção da condenação por dano moral coletivo foi a aplicação da Teoria do Desestímulo (punitive damages). A finalidade dessa indenização não é apenas compensar a sociedade, mas punir o ofensor de forma exemplar para desestimular a reincidência de condutas semelhantes no futuro.
O Tribunal entendeu que a violação perpetrada pelo Estado exigia uma resposta contundente. A simples reparação dos danos materiais seria insuficiente para impedir que novas operações ilegais ocorressem, especialmente considerando o histórico de ações voltadas à retirada de pessoas em situação de rua de áreas nobres da capital. A indenização, portanto, deve ter um impacto significativo no patrimônio do lesante para que a sanção cumpra sua função pedagógica.
A Controvérsia sobre o Valor da Indenização
A fixação do valor da indenização gerou debate no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT).
- A posição divergente: A Relatora original propôs a redução do valor para R$ 100.000,00, argumentando que a atuação da associação autora era limitada ao Setor Comercial Sul (quatro quadras) e que a repercussão do dano, embora negativa, não atingiu todo o Distrito Federal com a mesma intensidade.
- A decisão majoritária: Prevaleceu, no entanto, o voto divergente que manteve o valor fixado na sentença de primeiro grau: R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais).
A maioria do colegiado entendeu que a gravidade da ofensa — praticada durante uma pandemia e no inverno, ignorando recomendações do Ministério Público — e a necessidade de impor uma sanção pedagógica severa justificavam a manutenção do valor milionário. Foi destacado que a intolerabilidade da ilicitude e a repercussão social dos fatos exigiam o acolhimento integral da pretensão indenizatória.
A Destinação da Indenização Coletiva: O Papel do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos
Embora o valor da indenização por danos morais coletivos tenha sido confirmado em R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) pelas instâncias ordinárias, restava uma questão jurídica fundamental a ser pacificada: para quem deve ir esse dinheiro?
Nas decisões de primeiro e segundo graus (TJDFT), determinou-se que o montante fosse administrado diretamente pela associação autora da ação (Instituto Cultural e Social No Setor), sob a fiscalização do Ministério Público . O Tribunal argumentou que o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDD) tem se mostrado historicamente ineficaz, com recursos frequentemente contingenciados para o superávit primário da União, em vez de serem aplicados na reparação de danos . Para os magistrados locais, destinar a verba à associação garantiria uma aplicação mais célere e eficaz em prol da população de rua do Setor Comercial Sul .
A Intervenção do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
O Distrito Federal recorreu ao STJ, argumentando que a destinação direta à associação violava a legislação federal. Ao analisar o Agravo em Recurso Especial, o Ministro Relator Teodoro Silva Santos reformou o acórdão do TJDFT neste ponto específico, fazendo prevalecer o princípio da legalidade estrita sobre o pragmatismo judicial .
A decisão fundamentou-se no artigo 13 da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), que é taxativo ao determinar que as condenações em dinheiro devem reverter a um fundo gerido por um Conselho Federal ou Conselhos Estaduais .
"Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados." (Art. 13 da Lei nº 7.347/85)
Legalidade x Eficácia
O STJ entendeu que não cabe ao Poder Judiciário, sob o pretexto de buscar maior eficácia ou exercer um "poder geral de cautela", ignorar uma determinação legal expressa . O argumento de que o fundo seria ineficiente não autoriza o juiz a legislar ou alterar o destinatário dos recursos públicos definidos pelo Congresso Nacional.
Além disso, a Corte Superior esclareceu um ponto crucial sobre a natureza do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDD). Regulamentado pelo Decreto nº 1.306/94, o FDD integra a estrutura do Ministério da Justiça, órgão do Poder Executivo Federal . Portanto, foi afastada a tese de confusão patrimonial (o Estado pagando a si mesmo), uma vez que o causador do dano foi o Distrito Federal (ente distrital), enquanto o gestor do fundo é a União (ente federal) .
Conclusão
O desfecho do caso reafirma a proteção aos direitos da população em situação de rua, reconhecendo a ilicitude das operações "higienistas" e a necessidade de reparação robusta. Contudo, em relação à gestão financeira da penalidade coletiva, o STJ fixou a tese de que os recursos devem seguir o rito legal do FDD, vedando a transferência direta para associações privadas, ainda que sem fins lucrativos, para preservar a estrutura do sistema de tutela coletiva brasileiro .
Memorando nº 68/2025 - PMDF/DOP/SOP/SOP/CH; OFÍCIO Nº 034058/2025 – GEBIN/DIOPE/SUOP/SEGER; Recomendação nº03/2021 - MPDFT.