1. O Conflito na Prática: A Prerrogativa do Advogado e a Atuação Policial
No cotidiano das operações policiais e da advocacia criminal, situações de tensão entre o exercício da defesa e a manutenção da ordem pública são frequentes. Um cenário comum, e que muitas vezes gera dúvidas jurídicas, envolve a detenção de um indivíduo no interior de uma viatura policial.
Neste contexto, é habitual que o advogado compareça ao local da abordagem e solicite conversar pessoal e reservadamente com seu cliente, que se encontra detido no banco traseiro do veículo oficial. O conflito se estabelece quando a autoridade policial nega esse pedido, condicionando a comunicação à sua presença ou supervisão direta, alegando razões de segurança ou procedimento padrão.
Essa negativa levanta uma questão jurídica fundamental: a atitude do policial configura uma violação das prerrogativas profissionais do advogado? Ou, por outro lado, trata-se de uma medida legítima de segurança operacional?
Para analisar essa situação, é necessário compreender que existem dois direitos e deveres em colisão aparente:
- O Direito de Defesa: A necessidade do advogado de orientar seu cliente de forma sigilosa, garantindo que a estratégia defensiva e os direitos constitucionais do detido sejam preservados desde o primeiro momento da abordagem.
- O Dever de Custódia: A responsabilidade do agente de segurança pública em garantir a integridade física do detido, da equipe policial e de terceiros, além de evitar tentativas de fuga ou interferências externas na diligência em curso.
A resolução deste impasse não é baseada apenas no senso comum, mas em dispositivos legais específicos e na interpretação dos tribunais sobre os limites de cada atuação. Para determinar se houve abuso de autoridade ou exercício regular de direito, deve-se examinar o que a legislação estabelece sobre a comunicação entre cliente e defensor, bem como as exceções aplicáveis a cenários de risco real.
2. A Regra Legal: O Direito à Comunicação Pessoal e Reservada
A base legal para a atuação do advogado neste cenário encontra-se no Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (Lei Federal nº 8.906/94). A legislação é clara ao estabelecer as prerrogativas profissionais, visando assegurar a ampla defesa e o devido processo legal.
Especificamente sobre a comunicação com clientes sob custódia do Estado, o artigo 7º define o direito do advogado de acessar seu cliente de maneira irrestrita em relação ao sigilo da conversa.
Lei 8.906/94 - Art. 7º: São direitos do advogado:
III - comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis.
A leitura deste dispositivo revela pontos cruciais:
- Ausência de Procuração: Em momentos de urgência, como uma prisão em flagrante na via pública, não se exige que o advogado apresente procuração formalizada para ter acesso ao cliente.
- Caráter Reservado: A conversa não pode ser monitorada, ouvida ou interrompida por agentes policiais. O sigilo é essencial para que o detido possa relatar os fatos e receber orientação jurídica sem medo de autoincriminação perante a autoridade policial.
- Abrangência: A regra vale para presos, detidos ou recolhidos, aplicando-se, em tese, a qualquer momento da custódia, inclusive durante diligências ou na lavratura do flagrante.
Portanto, a regra geral é a permissão. O sistema jurídico brasileiro pressupõe que o acesso ao advogado é um direito fundamental que não deve ser obstaculizado sem motivo justo. Quando um advogado solicita falar com o cliente na viatura, ele está exercendo uma prerrogativa de lei federal.
Contudo, nenhum direito é absoluto. A aplicação prática desta norma encontra limites quando colide com a segurança pública e a integridade física dos envolvidos, conforme será detalhado a seguir.
3. Segurança Pública e Integridade Física: As Exceções à Regra
Embora a prerrogativa do advogado seja clara e garantida por lei federal, o direito de comunicação reservada não é absoluto. A sua aplicação no "calor do momento", especialmente em vias públicas ou locais de crime, deve ser ponderada com outros valores jurídicos de igual ou maior relevância, como a segurança pública e a integridade física de todos os envolvidos.
A autoridade policial detém a responsabilidade legal pela custódia do indivíduo detido. Isso significa que, a partir do momento da captura, o policial responde civil, penal e administrativamente por qualquer dano que ocorra ao preso, bem como por uma eventual fuga ou resgate.
O Conceito de Justa Causa
A restrição ao contato imediato e reservado só é admissível quando existe uma justa causa real e concreta. Não basta uma suposição abstrata de risco; devem existir elementos fáticos que justifiquem a medida excepcional.
As principais situações que configuram essa exceção incluem:
- Segurança do Local: Se a abordagem ocorre em locais de alta periculosidade, como vielas estreitas, áreas de conflito armado, zonas de tráfico intenso ou em meio a aglomerações hostis, o ambiente não oferece as condições mínimas de segurança para uma conversa reservada.
- Risco de Fuga ou Resgate: Abrir a viatura ou permitir o contato próximo sem supervisão em via pública pode facilitar a fuga do detido ou uma tentativa de resgate por terceiros.
- Integridade do Advogado: Em cenários voláteis, o próprio advogado pode ser colocado em risco. O policial tem o dever de evitar que civis, incluindo a defesa técnica, sejam expostos a perigos iminentes durante a operação.
- Interferência na Diligência: Se a operação ainda está em curso (por exemplo, um imóvel ainda não totalmente vistoriado ou a busca por outros suspeitos), a comunicação imediata pode, em tese, ser utilizada para destruir provas ou alertar cúmplices.
Nesses casos, a negativa do policial não deve ser interpretada como um impedimento definitivo ao direito de defesa, mas sim como um adiamento da comunicação. O objetivo é postergar o contato para um momento e local onde a segurança esteja restabelecida.
Se a autoridade policial avaliar que o local é seguro e controlado, a comunicação pode ser autorizada ali mesmo. Contudo, havendo risco, a prioridade torna-se a preservação da vida e da ordem, devendo a conversa ocorrer posteriormente em local adequado, como a delegacia.
4. Jurisprudência Recente: O Entendimento do TJSP (2025)
A discussão sobre os limites das prerrogativas advocatícias frente à segurança das operações policiais não é apenas teórica, sendo frequentemente submetida ao crivo do Poder Judiciário. Recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) proferiu uma decisão relevante que baliza esse entendimento, reforçando a tese de que o direito de acesso não se sobrepõe, em absoluto, à eficácia e segurança de diligências complexas.
O caso em questão envolve um Mandado de Segurança julgado no início de 2025, referente a uma operação policial de busca e apreensão ligada a organizações criminosas.
Referência Jurisprudencial: Mandado de Segurança nº 2134051-74.2024.8.26.0000 Julgado em: 03/02/2025 – TJSP
Neste episódio específico, uma advogada foi impedida de adentrar o imóvel enquanto a busca policial ainda estava em curso. Inicialmente, a 1ª Vara anulou a diligência, entendendo haver violação das prerrogativas da defesa. No entanto, após recurso do Ministério Público, o TJSP reformou a decisão e restaurou a validade da operação.
O entendimento da corte paulista baseou-se na premissa de que o acesso do advogado pode ser legitimamente limitado para não comprometer o sucesso da operação, especialmente quando há risco de interferência na coleta de provas ou na segurança da equipe.
A decisão destacou dois pontos fundamentais:
- Fundamentação da Restrição: A autoridade policial deve justificar o impedimento. No caso, tratava-se de uma investigação sensível envolvendo o crime organizado, onde a entrada prematura de terceiros poderia prejudicar o cumprimento do mandado.
- Prevalência do Interesse Público: Embora o direito de defesa seja sagrado, ele deve coexistir com a necessidade do Estado de investigar e reprimir crimes de forma eficaz. Se a presença imediata do advogado representar um risco real à diligência, a restrição temporária é lícita.
Essa jurisprudência serve como um norteador importante: o Judiciário reconhece a validade das ações policiais que restringem momentaneamente o contato, desde que estas não sejam arbitrárias e estejam alicerçadas em fatos concretos que justifiquem a medida excepcional.
5. Procedimentos Recomendados: Como Agir Diante do Impasse
Para mitigar conflitos e garantir que tanto os direitos fundamentais quanto a segurança pública sejam preservados, a solução do impasse deve seguir uma lógica procedimental clara. O objetivo final não é o embate entre instituições, mas a garantia da legalidade do processo.
O Uso de Locais Adequados
A via pública, especialmente o interior de uma viatura policial, raramente é o ambiente ideal para o aconselhamento jurídico. Delegacias de polícia são equipadas, em sua maioria, com espaços apropriados para essa finalidade, como parlatórios, salas da OAB ou salas reservadas.
Sempre que possível, a comunicação deve ser realizada nesses ambientes controlados. No entanto, se a diligência demorar ou se houver necessidade urgente de orientação no local dos fatos:
- Avaliação de Risco: O policial deve realizar uma análise técnica do ambiente. Se o local for seguro, a comunicação pode ser autorizada no próprio local.
- Deslocamento: Se houver risco, o policial deve informar ao advogado que a comunicação será garantida assim que o detido for transportado para um local seguro (delegacia ou base policial).
A Importância da Formalização (Boletim de Ocorrência)
A transparência é a melhor defesa contra alegações de abuso de autoridade ou cerceamento de defesa. Caso o agente de segurança pública decida restringir o acesso imediato do advogado ao cliente com base em uma justa causa (risco de fuga, segurança da equipe, ambiente hostil), essa decisão não pode ser apenas verbal.
Registro Formal: Toda negativa de acesso ou adiamento da comunicação deve ser explicitamente justificada e registrada no Boletim de Ocorrência (BO). O documento deve detalhar as circunstâncias fáticas que impediram o contato naquele momento específico (ex: "local de risco", "aglomeração popular", "falta de segurança para abertura do compartimento de presos").
Para o advogado, caso a negativa ocorra sem fundamentação aparente, a orientação é solicitar que o impedimento conste no registro da ocorrência, resguardando o direito de questionar a nulidade dos atos posteriormente, caso se comprove prejuízo à defesa.
Resumo Prático
Em suma, a interação entre advogados e policiais neste cenário deve ser pautada pelo equilíbrio:
- Regra Geral: O advogado tem direito a falar reservadamente com o preso.
- Exceção: Se houver risco real à integridade física ou à operação, a comunicação pode ser adiada.
- Procedimento: A restrição deve ser fundamentada e, se mantida, devidamente registrada nos autos da ocorrência policial.
Desta forma, respeita-se a prerrogativa essencial da advocacia sem comprometer a responsabilidade do Estado na custódia de presos e na manutenção da ordem pública.
Canga Jurídico, https://www.instagram.com/p/DRefoisDW4M/