O Direito do Cidadão de Registrar a Atuação Estatal

A interação entre civis e agentes de segurança pública em via pública suscita, frequentemente, dúvidas acerca dos limites da privacidade e da publicidade dos atos administrativos. Uma questão central nesse debate é a legalidade de filmar abordagens ou ações policiais. Em um Estado Democrático de Direito, a regra geral é clara: o registro da atuação estatal por cidadãos não constitui crime. Pelo contrário, trata-se de um exercício legítimo de controle social e fiscalização da atividade pública.

A polícia, como braço armado do Estado, exerce suas funções sob o princípio da publicidade. Salvo exceções legais específicas, os atos praticados por servidores públicos durante o serviço são de natureza pública. Portanto, capturar imagens ou vídeos de uma intervenção policial em local público não é, por si só, uma conduta ilícita. Não existe tipificação penal que proíba o cidadão de documentar o que ocorre em espaços de acesso comum.

Esse entendimento é reforçado pela jurisprudência dos tribunais brasileiros, que reconhecem o direito de registro como uma ferramenta de transparência. A gravação serve como garantia tanto para o cidadão, que pode provar eventuais abusos, quanto para o próprio policial, que pode demonstrar a regularidade de sua conduta técnica.

"Registrar a atuação estatal é exercício legítimo de controle social."

(TJ-DF 0717953-91.2015.8.07.0016 – 28/02/2018)

No entanto, é fundamental compreender que nenhum direito é absoluto. Embora a regra seja a permissão, existem restrições importantes que devem ser observadas para não incorrer em violações de outras naturezas. A liberdade de filmar encontra barreiras quando envolve temas protegidos por sigilo legal ou situações de vulnerabilidade extrema.

As principais exceções incluem:

  • Operações Encobertas: Situações onde o sigilo é essencial para o sucesso da investigação ou para a segurança dos agentes envolvidos.
  • Vítimas Vulneráveis: A exposição indevida de vítimas, especialmente menores de idade ou pessoas em situação vexatória, pode configurar violação de direitos de imagem e dignidade.
  • Dados Sensíveis: A captação não deve focar deliberadamente em documentos sigilosos ou informações pessoais protegidas que estejam sendo manuseadas pelos agentes.

Fora dessas circunstâncias excepcionais, a tentativa de impedir a gravação sob o pretexto genérico de "desacato" ou "obstrução" carece de fundamentação legal, desde que o indivíduo que filma não esteja interferindo fisicamente na ação ou incitando a violência. O ato de segurar um celular e registrar a cena, mantendo uma distância segura e respeitosa, é um direito assegurado.


A Proibição de Exigir a Exclusão das Imagens

Uma prática infelizmente observada em alguns cenários de tensão é a ordem emanada por agentes de segurança para que o cidadão apague o registro visual recém-capturado. Diante dessa situação, a resposta jurídica é taxativa: a autoridade policial não possui respaldo legal para exigir a exclusão de vídeos ou fotos contidos no aparelho celular de um civil.

A ordem para apagar um registro audiovisual configura uma conduta grave, pois o arquivo digital pode constituir uma prova material relevante. Seja para corroborar a versão da autoridade policial, demonstrando que agiu estritamente dentro da legalidade, seja para comprovar eventuais abusos de poder, a integridade do vídeo deve ser preservada. A destruição desse material atenta contra a busca da verdade real e o devido processo legal.

Juridicamente, a exigência de apagar o conteúdo pode ser interpretada como uma tentativa de supressão de provas ou fraude processual, dependendo do contexto. Além disso, tal postura é considerada antiética e compromete severamente a credibilidade da instituição policial. A lógica é simples: quem age em conformidade com a lei não deve temer o registro de seus atos; pelo contrário, a gravação serve como defesa contra acusações infundadas.

Os tribunais estaduais têm se posicionado firmemente contra essa prática, reforçando que o agente público não tem o poder discricionário de censurar o conteúdo armazenado no dispositivo do cidadão após a captura.

"Apagar prova é conduta antiética e compromete a credibilidade policial."

(TJ-SP APR 0014545-61.2015.8.26.0451 – 18/12/2018)

Portanto, se um policial ordena que o cidadão desbloqueie o aparelho e delete o vídeo, essa ordem é manifestamente ilegal. O cidadão, embora deva acatar ordens legais (como afastar-se para garantir a segurança do perímetro ou identificar-se), não está obrigado a destruir seu próprio patrimônio digital ou provas potenciais de uma ocorrência. A preservação do conteúdo é um direito e, em muitos casos, um dever cívico para a elucidação dos fatos.


Limites Legais para a Apreensão do Aparelho Celular

Diante da ameaça de apreensão do dispositivo móvel pelo simples fato de o cidadão estar filmando uma ocorrência, é imperativo analisar o que diz a legislação processual penal brasileira. A dúvida que surge — "pode apreender só por filmar?" — possui uma resposta jurídica fundamentada na regra geral de proteção à propriedade e nos requisitos específicos para a coleta de provas.

A regra geral é negativa: a autoridade policial não pode apreender o celular de uma testemunha ou de um transeunte apenas porque este registrou a ação. Para que um bem seja legitimamente apreendido durante uma diligência, deve haver um vínculo direto com a infração penal investigada.

O Código de Processo Penal (CPP) estabelece as diretrizes para a atuação da autoridade policial logo após o conhecimento da prática da infração penal.

"O art. 6º, III, do Código de Processo Penal autoriza a apreensão apenas de objetos que tenham relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais."

Isso significa que a apreensão é cabível quando o objeto é:

  1. Produto do crime: O bem foi obtido através da infração (ex: um celular roubado ou furtado).
  2. Instrumento do crime: O bem foi utilizado para executar a infração (ex: um celular usado para aplicar golpes, coordenar tráfico de drogas ou detonar explosivos).

Se o aparelho celular em questão é apenas o dispositivo utilizado por um terceiro para documentar a abordagem policial, ele não se enquadra como produto nem como instrumento do crime que está sendo atendido ali naquele momento. O simples fato de a filmagem conter imagens da abordagem não transforma o telefone em um objeto ligado à ilicitude penal.

Portanto, não há base legal para confiscar o telefone de quem apenas observa e registra. A apreensão motivada por incômodo, "birra" ou retaliação por parte do agente público é ilegal e pode configurar abuso de autoridade. A autoridade não pode utilizar o poder de polícia como ferramenta punitiva contra o cidadão que exerce seu direito de fiscalização, desvirtuando a finalidade da apreensão criminal, que é a prova material do delito e não a censura da testemunha.


Prerrogativas Policiais e Deveres do Cidadão na Ocorrência

Embora a apreensão arbitrária do celular e a ordem para apagar imagens sejam ilegais, isso não significa que a autoridade policial esteja desprovida de ferramentas legais para gerir a cena de uma ocorrência. Existem procedimentos padrão que devem ser seguidos para garantir a ordem pública e a instrução processual, sem violar os direitos individuais.

O policial, no exercício de suas funções, possui prerrogativas claras. Ao se deparar com um cidadão filmando uma ação, o agente pode e deve qualificar essa pessoa como testemunha dos fatos. Isso implica coletar os dados pessoais do indivíduo para que ele possa ser intimado posteriormente a depor ou apresentar o material gravado em juízo ou na delegacia, caso seja necessário para a elucidação do crime investigado.

Nesse sentido, o policial pode registrar na ocorrência a existência das imagens e informar ao Delegado de Polícia. Caberá à autoridade policial judiciária (o Delegado) avaliar a pertinência do vídeo e, se for o caso, representar pela solicitação formal do arquivo ou pela apreensão do dispositivo pelas vias legais adequadas, garantindo o devido processo.

Por outro lado, o cidadão possui deveres. O direito de filmar não confere imunidade para atrapalhar o trabalho policial. A legislação estabelece limites comportamentais rigorosos:

  • Identificação Obrigatória: Se o policial exigir a identificação do cidadão que está filmando, este deve apresentá-la. A recusa em fornecer a identificação pode configurar contravenção penal.

    "Art. 68 da Lei das Contravenções Penais (LCP): Recusar à autoridade, quando por esta, justificadamente, solicitados, os dados ou indicações concernentes à própria identidade, estado, profissão, domicílio e residência."

  • Manutenção da Ordem: O cidadão não pode incitar tumulto, gritaria ou proferir ofensas aos agentes. Tais condutas podem caracterizar perturbação do sossego, desobediência ou desacato.

    Art. 42 da LCP: Perturbação do trabalho ou sossego alheios.

    Art. 330 do Código Penal: Crime de Desobediência.

    Art. 331 do Código Penal: Crime de Desacato.

Em suma, o equilíbrio na relação entre civis e policiais reside no respeito mútuo às normas. Filmar é permitido, mas deve ser feito de forma pacífica e sem interferência física. Mandar apagar ou apreender o celular por retaliação é abuso de autoridade. A apreensão imediata do aparelho só se justifica se houver vínculo direto e comprovado com a prática criminosa (como instrumento ou produto do crime). Fora dessas hipóteses, a integridade do patrimônio e das provas digitais do cidadão deve ser preservada.


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há 16 horas
Matéria: Atividade Policial
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