1. CONCEITO
O termo constitucionalismo é complexo e abrange uma variedade de ideias que evoluíram ao longo da história. Essencialmente, ele não se refere apenas à existência de uma Constituição, mas a um movimento mais profundo e aos propósitos que ela serve dentro de um Estado.
Segundo os juristas André Ramos Tavares e Pedro Lenza, o conceito de constitucionalismo pode ser compreendido sob quatro perspectivas principais:
- Movimento Histórico: É visto como um movimento político e social, com raízes históricas remotas, cujo objetivo principal é limitar o poder arbitrário dos governantes.
- Formalização Escrita: Refere-se à exigência de que os Estados adotem cartas constitucionais escritas como forma de organizar e limitar o poder.
- Propósito Atual: Diz respeito às funções e à posição que as constituições ocupam nas sociedades contemporâneas, focando em seus objetivos mais latentes.
- Evolução Estatal: Pode ser entendido como a própria evolução histórico-constitucional de um determinado Estado.
Partindo dessas definições, a ideia de que todo Estado deve possuir uma Constituição está intrinsecamente ligada a duas características fundamentais:
- a garantia da limitação ao poder autoritário (OBJETO); e,
- a prevalência dos direitos fundamentais.
O constitucionalismo, nesse sentido, representa um afastamento da visão opressora do antigo regime, buscando estruturar o poder de forma que ele não subjugue o indivíduo.
2. SENTIDOS
No estudo do Direito Constitucional, o conceito de "constitucionalismo" é frequentemente analisado sob duas óticas distintas, porém complementares: um sentido amplo e um sentido estrito.
2.1. AMPLO
Em seu sentido amplo, o constitucionalismo refere-se simplesmente ao fato de que todo Estado, em qualquer período da história humana, possui uma constituição.
Segundo Uadi Lammêgo Bulos, esta definição abrange qualquer forma de organização estatal, "independentemente do regime político adotado ou do perfil jurídico que se lhe pretenda irrogar". Nesta visão, mesmo um Estado absolutista ou autoritário que possua um documento (ou conjunto de costumes) que estruture o poder se enquadra no constitucionalismo amplo.
2.2. ESTRITO
Já o sentido estrito é mais específico e carrega uma carga valorativa. Ele não se contenta apenas com a existência de uma Constituição, mas exige que ela cumpra propósitos específicos de controle do poder.
Para Bulos, o sentido estrito é "a técnica jurídica de tutela das liberdades, surgida nos fins do século XVIII". O objetivo dessa técnica é permitir que os cidadãos exerçam seus direitos e garantias fundamentais com base em constituições escritas, protegendo-os da opressão, da força e do arbítrio estatal.
Marcelo Novelino reforça essa visão, associando o constitucionalismo estrito a duas noções básicas:
- O princípio da separação dos poderes (nas versões de Kant e Montesquieu);
- A garantia de direitos fundamentais.
Esses elementos funcionam como instrumentos de limitação do exercício do poder estatal, focados na proteção das liberdades.
A importância desses pilares é tamanha que a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (DUDH), em 1789, condicionou a própria existência de uma Constituição a eles, em seu famoso Artigo 16:
Art. 16.º A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.
2.2.1. PILARES FUNDAMENTAIS
O constitucionalismo em sentido estrito, como vimos, é fundamentalmente uma resposta ao poder absoluto e arbitrário. Sua história confunde-se com a própria busca por liberdade e dignidade humana frente ao controle estatal.
Essa jornada é bem resumida na célebre frase de Karl Loewenstein (1970), citada por Novelino, que define a essência do movimento:
[...] a história do constitucionalismo “não é senão a busca pelo homem político das limitações do poder absoluto exercido pelos detentores do poder, assim como o esforço de estabelecer uma justificação espiritual, moral ou ética da autoridade, em vez da submissão cega à facilidade da autoridade existente.”
Esta busca por limitações e justificação ética do poder se materializa em características centrais que definem o constitucionalismo estrito. Sistematizando as ideias apresentadas, encontramos três pilares fundamentais:
- Garantia de direitos: O reconhecimento e a proteção dos direitos fundamentais da pessoa.
- Separação dos Poderes: A divisão do poder estatal (Legislativo, Executivo e Judiciário) para criar um sistema de freios e contrapesos, impedindo que um único órgão acumule poder excessivo.
- Governo limitado: A própria ideia de que o governo não é absoluto e deve operar dentro dos limites estabelecidos pela Constituição.
Uadi Lammêgo Bulos complementa essa visão ao situar o objetivo do constitucionalismo no fim do século XVIII: limitar o poder despótico. Isso seria alcançado através do estabelecimento de regimes constitucionais que consagrassem "os limites do poder dos governantes, pelo reconhecimento dos postulados supremos da personalidade humana, consectários da igualdade, da fraternidade, da legalidade, da liberdade e da democracia."
3. FASES DO CONSTITUCIONALISMO
3.1. CONSTITUCIONALISMO ANTIGO
Embora o constitucionalismo moderno tenha se consolidado no século XVIII, a busca por limitar o poder político é muito mais antiga, com experiências relevantes datando da Antiguidade (período que antecede 476 d.C. na Idade Antiga).
3.1.1. EXPERIÊNCIAS PRIMITIVAS
(Idade Clássica)
3.1.1.1. PRIMEIRA FASE
- Estado Hebreu: Segundo Marcelo Novelino, a primeira experiência constitucional de que se tem notícia, no sentido de impor limites ao poder político dentro de uma organização estatal, ocorreu no Estado Hebreu.
3.1.1.2. SEGUNDA FASE
- Grécia (Atenas): Durante cerca de dois séculos, a Grécia experimentou um Estado político considerado plenamente constitucional, adotando uma democracia constitucional que, muitas vezes, incluía a participação direta dos cidadãos nas decisões políticas.
- Roma: A experiência romana sucedeu a grega, apresentando ampliações e uma sequência distinta. Foi em Roma que surgiram os conceitos de "principado" e "res publica" (coisa pública). Conforme Flávio Martins, o constitucionalismo romano floresceu no período da República, marcado pela limitação do poder dos patrícios e pela previsão de direitos fundamentais, mas entrou em declínio nos períodos seguintes (Principado e Baixo Império/Dominato).
EXPERIÊNCIAS COMUNS: Apesar das diferenças, o constitucionalismo antigo, conforme descrito por Uadi Lammêgo Bulos (2007) e outros, apresentava características predominantes:
- Constituições Consuetudinárias: Havia a inexistência de constituições formais escritas. O direito era baseado principalmente em leis não escritas e nos costumes (opinio juris et necessitatis), que eram a principal fonte de direitos. A tendência era julgar litígios com base em soluções dadas a conflitos análogos, similar aos precedentes judiciais.
- Influência Religiosa: A religião exercia forte influência, com a crença comum de que os líderes políticos eram representantes dos deuses na terra.
- Uso da Coerção: O respeito aos padrões de conduta era frequentemente assegurado por meios de constrangimento (como as ordálias) para manter a coesão do grupo.
- Limites ao Monarca: Mesmo sem uma carta formal, existia a garantia de certos direitos perante o Monarca, limitando seu poder.
- Questões de Poder (Grécia): No caso grego, especificamente, Bulos aponta a prevalência da supremacia do Parlamento, a possibilidade de modificar proclamações constitucionais por leis ordinárias e a irresponsabilidade governamental dos detentores do poder.
3.1.1.3. TERCEIRA FASE
(Idade Média)
Avançando na linha do tempo, o Constitucionalismo Medieval corresponde ao período da Idade Média (geralmente situado entre 476 d.C. - queda do império romano ocidental - e 1453 d.C.). Embora marcado por estruturas de poder fragmentadas e pelo feudalismo, este período produziu documentos cruciais na longa jornada de limitação do poder real.
O exemplo mais vigoroso e influente dessa busca por limites ao poder durante a Idade Média é, sem dúvida, a Magna Carta, imposta ao Rei João da Inglaterra em 1215. Este documento não era uma constituição no sentido moderno, mas sim um pacto que limitava os poderes do monarca e garantia certos direitos aos barões (e, por extensão, a outros homens livres).
A importância duradoura da Magna Carta é destacada por Flávio Martins, que a considera uma fonte normativa seminal para diversos direitos fundamentais reconhecidos globalmente hoje. Martins detalha o legado do documento:
“É inegável a importância da Magna Carta de 1215, já que podemos considerá-la como sendo a fonte normativa de vários direitos fundamentais largamente reconhecidos pelas legislações dos povos. Por exemplo, podemos afirmar ser ela a origem remota do habeas corpus, como afirma Pontes de Miranda, em obra específica sobre o tema. De fato, não previa a Magna Carta expressamente essa ação, mas o direito à liberdade de locomoção, por ela tutelado. Outrossim, inegavelmente, é a origem normativa clara e expressa do ‘devido processo legal’, embora utilizando-se de uma expressão diversa (‘lei da terra’). Por essa razão, a doutrina afirma que ‘a carta de 1215 foi a pedra inicial do novo estado de coisas, para a Inglaterra, para as nações-filhas e para o Homem’”
Portanto, a Magna Carta é celebrada não apenas por limitar o poder do rei na época, mas por plantar as sementes de conceitos jurídicos essenciais, como o habeas corpus (proteção contra prisões arbitrárias) e o devido processo legal, que são pilares do constitucionalismo moderno.
GUIA DE ESTUDO
1. Quais são as quatro perspectivas principais para compreender o conceito de constitucionalismo, segundo André Ramos Tavares e Pedro Lenza?
Segundo André Ramos Tavares e Pedro Lenza, o constitucionalismo pode ser compreendido como: um movimento político e social para limitar o poder arbitrário; a exigência de constituições escritas; o estudo das funções atuais das constituições; e a evolução histórico-constitucional de um Estado.
2. Diferencie o constitucionalismo em seu sentido amplo e em seu sentido estrito, conforme apresentado no texto.
Em seu sentido amplo, o constitucionalismo refere-se ao fato de que todo Estado, independentemente do regime político, possui uma forma de organização (uma constituição). Já o sentido estrito é uma técnica jurídica surgida no século XVIII, que exige que a Constituição sirva para tutelar as liberdades, limitando o poder estatal através de instrumentos específicos.
3. Quais são os três pilares fundamentais que definem o constitucionalismo em sentido estrito?
Os três pilares fundamentais do constitucionalismo em sentido estrito são: a garantia de direitos fundamentais da pessoa; a separação dos Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário); e a ideia de um governo limitado, que deve operar dentro das regras estabelecidas pela Constituição.
4. De acordo com o texto, qual foi a primeira experiência histórica de limitação do poder político e qual sua importância?
De acordo com Marcelo Novelino, a primeira experiência de limitação do poder político de que se tem notícia ocorreu no Estado Hebreu. Sua importância reside em ser o marco inicial, no âmbito de uma organização estatal, de um movimento para impor limites à autoridade dos governantes.
5. Qual a importância da Magna Carta de 1215 para a evolução do constitucionalismo?
A Magna Carta de 1215 é fundamental por ser um pacto que limitou os poderes do monarca inglês e garantiu direitos. Ela é considerada a fonte normativa seminal de conceitos jurídicos essenciais ao constitucionalismo moderno, como a origem remota do habeas corpus (proteção à liberdade de locomoção) e a origem expressa do devido processo legal.
6. Segundo o Artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (DUDH), quais são as duas condições essenciais para que uma sociedade possua uma Constituição?
O Artigo 16 da DUDH estabelece que uma sociedade só possui Constituição se estiverem asseguradas duas condições: a garantia dos direitos e a separação dos poderes. Sem esses elementos, um documento não pode ser considerado uma Constituição genuína no sentido moderno.
7. Cite três características comuns ao constitucionalismo antigo, conforme descrito no texto.
Três características comuns ao constitucionalismo antigo são: a predominância de constituições consuetudinárias (baseadas em costumes e não escritas); a forte influência da religião, com líderes vistos como representantes dos deuses; e a existência de limites ao poder do Monarca, mesmo sem uma carta formal.
8. Qual o principal objetivo do constitucionalismo quando entendido como um movimento político e social?
Quando entendido como um movimento político e social, o principal objetivo do constitucionalismo é limitar o poder arbitrário dos governantes. Ele representa um afastamento da visão opressora do antigo regime, buscando estruturar o poder de forma que não subjugue o indivíduo.
9. Como a experiência romana, durante o período da República, contribuiu para o desenvolvimento do constitucionalismo?
O constitucionalismo romano, que floresceu no período da República, contribuiu com a criação dos conceitos de "principado" e "res publica" (coisa pública). Esse período foi marcado pela limitação do poder dos patrícios e pela previsão de direitos fundamentais, representando um avanço na estruturação do Estado e na proteção do cidadão.
10. Resuma a definição de Karl Loewenstein sobre a história do constitucionalismo.
Karl Loewenstein define a história do constitucionalismo como "a busca pelo homem político das limitações do poder absoluto exercido pelos detentores do poder". Além disso, é também um esforço para estabelecer uma justificação espiritual, moral ou ética para a autoridade, em oposição à submissão cega ao poder existente.
PRÁTICA DISCURSIVA
(Caso haja dúvida, pergunte ao Professor IA que irá te ajudar com a resolução)
- Discorra sobre a evolução do constitucionalismo, partindo das experiências da Antiguidade (hebreus, gregos e romanos) até o marco medieval da Magna Carta, destacando as principais mudanças na forma de limitar o poder político.
- Compare e contraste os sentidos amplo e estrito do constitucionalismo. Utilize a citação do Artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão para argumentar sobre a importância do sentido estrito para a garantia das liberdades.
- Analise o papel da separação dos poderes e da garantia de direitos como pilares do constitucionalismo estrito. Explique como esses dois elementos funcionam em conjunto para limitar o arbítrio estatal e proteger a dignidade humana.
- Com base na citação de Karl Loewenstein, elabore sobre a ideia do constitucionalismo como uma "busca" por justificação ética do poder, em oposição à "submissão cega". Como esse conceito se materializa nos objetivos do constitucionalismo moderno?
- Descreva as principais características do constitucionalismo antigo, abordando a natureza das constituições consuetudinárias, a influência religiosa e as particularidades das experiências grega e romana na organização do poder estatal.