1. Contexto da Imoralidade em Corinto e a Omissão da Igreja
O apóstolo Paulo, em sua primeira carta à igreja de Corinto, confronta uma série de problemas que minavam a saúde espiritual e o testemunho daquela comunidade. O capítulo 5 marca o início de uma seção dedicada à disciplina eclesiástica, começando por um caso de imoralidade particularmente grave e escandaloso: um membro da igreja vivia publicamente com sua madrasta. Essa prática não era apenas uma violação explícita da lei de Moisés, mas também era considerada reprovável na própria sociedade greco-romana da época, tornando o escândalo ainda maior.
O que mais inflamou a indignação do apóstolo, no entanto, não foi apenas o pecado em si, mas a chocante omissão da igreja. Diante de uma transgressão notória, que envergonhava o nome de Cristo perante outras igrejas e a sociedade de Corinto, a liderança e a comunidade permaneceram passivas, sem tomar qualquer medida disciplinar. Essa inércia forçou Paulo a agir de forma enérgica. Mesmo à distância, ele julgou e sentenciou o infrator, ordenando que a igreja o expulsasse e o "entregasse a Satanás". O objetivo dessa medida drástica não era a condenação final do indivíduo, mas um ato de amor redentivo: levá-lo ao arrependimento para que, no fim, sua alma pudesse ser salva do juízo divino reservado aos imorais impenitentes.
Este episódio não era um caso isolado, mas o primeiro de três problemas decorrentes da mesma raiz: a falta de disciplina e de cuidado pastoral. Nos capítulos seguintes, Paulo abordaria o escândalo de irmãos que se processavam em tribunais seculares e a persistência da prostituição cultural entre membros que frequentavam templos pagãos. A intervenção de Paulo foi, portanto, uma ação necessária para restaurar a ordem, proteger a santidade da igreja e garantir que a comunidade continuasse a andar nos caminhos do Senhor.
2. A Base Teológica da Disciplina: Convencimento pela Verdade Bíblica
Antes de apresentar os argumentos que fundamentam sua sentença, o apóstolo Paulo demonstra um princípio essencial de sua liderança pastoral: ele nunca emite ordens práticas sem antes embasá-las teologicamente. Para Paulo, a prática cristã não deve ser uma obediência cega, mas uma resposta consciente e convicta à verdade revelada nas Escrituras.
Essa abordagem está enraizada na própria natureza da fé. A adesão ao cristianismo é um ato absolutamente voluntário, que brota do convencimento. Ninguém se torna um seguidor de Cristo por coação, mas por ser persuadido de que o Evangelho é, de fato, a plena verdade de Deus. Faz parte da identidade cristã estar convencido das doutrinas fundamentais, como a veracidade das Escrituras, a divindade de Cristo, a necessidade de uma vida santa e a realidade da Trindade. Uma pessoa que se declara membro de uma igreja, mas não está convicta das verdades que ela prega, possui uma fé superficial.
Por isso, a doutrina, o ensino e o estudo são tão importantes. Paulo não busca uma submissão forçada, mas uma obediência que nasce do entendimento. Ele argumenta e expõe as razões de suas decisões porque sabe que uma pessoa convencida contra a sua vontade, na realidade, continua com a mesma opinião. A verdadeira transformação ocorre quando o coração e a mente são cativados pela verdade, levando a uma prática de vida coerente e voluntária.
3. Princípio 1: O Fermento do Pecado e a Pureza da Páscoa Cristã
O primeiro e mais profundo argumento de Paulo para a necessidade da disciplina está enraizado no simbolismo da Páscoa, a mais importante festa judaica. Para que os coríntios entendessem a gravidade de tolerar o pecado, ele os reconecta à essência do que significa ser o povo redimido de Deus.
A Páscoa: Símbolo de Libertação e Pureza
A instituição da Páscoa, narrada no livro de Êxodo, marcava a libertação de Israel da escravidão no Egito. Naquela noite decisiva, cada família deveria sacrificar um cordeiro macho, de um ano e sem defeito, e passar seu sangue nas ombreiras das portas. A refeição deveria ser consumida com pães sem fermento e ervas amargas, em prontidão para a partida. O anjo da morte, ao "passar" (significado de Páscoa), pouparia as casas marcadas pelo sangue. Essa festa tornou-se o memorial anual da identidade de Israel: um povo salvo pelo sangue do cordeiro e chamado para viver uma nova vida.
Cristo, Nosso Cordeiro Pascal
Os primeiros cristãos, sendo judeus, rapidamente compreenderam que a Páscoa era uma prefiguração de uma realidade muito maior. O cordeiro sem defeito apontava para Cristo, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Essa verdade foi selada na noite em que Jesus foi traído, durante a celebração da Páscoa, quando Ele tomou o pão e o vinho e disse: "Isto é o meu corpo... Isto é o meu sangue". A Páscoa judaica encontrou seu cumprimento definitivo na morte de Cristo, sendo substituída pela Ceia do Senhor. Por isso, os cristãos não celebram a Páscoa com rituais, mas celebram a Ceia em memória do sacrifício que nos libertou da escravidão do pecado.
O Fermento do Pecado na Massa da Igreja
Com esse pano de fundo, Paulo confronta a atitude da igreja:
"Não é bom esse orgulho que vocês têm" (1 Co 5:6).
O principal problema em Corinto era um orgulho espiritual distorcido. Eles se gloriavam de dons e manifestações sobrenaturais, acreditando que isso era a prova máxima da presença de Deus. Essa visão os levou a minimizar e desleixar a vida moral, tratando o pecado como um detalhe sem importância. O orgulho os impedia de ver um princípio fundamental, que Paulo apresenta de forma simples e direta:
"Por acaso vocês não sabem que um pouco de fermento leveda a massa toda?" (1 Co 5:6).
Na simbologia bíblica, especialmente a da Páscoa, o fermento representa o pecado e a corrupção. O pão ázimo (sem fermento) simboliza a pureza e a santidade. Paulo argumenta que, ao tolerar um pecado público e notório, a igreja de Corinto estava permitindo que um "pouco de fermento" contaminasse toda a "massa". Essa contaminação não é apenas teórica. Quando o pecado não é tratado, o mau exemplo corrompe a consciência dos mais jovens, a moral da comunidade se deteriora e as pessoas começam a acreditar que o cristianismo é apenas sobre rituais, sem qualquer impacto na vida diária.
A Vida Cristã como uma Festa de Pureza
A solução é radical:
"Joguem fora o velho fermento, para que vocês sejam uma nova massa, como de fato são, sem fermento. Pois também Cristo, nosso Cordeiro Pascal, já foi sacrificado" (1 Co 5:7).
A igreja é, por definição, uma "massa sem fermento", purificada pelo sangue de Cristo. A presença do Espírito Santo em uma comunidade não gera tolerância ao pecado, mas sim um anseio por santidade. A morte de Cristo teve como objetivo nos livrar não apenas da culpa, mas também do domínio do pecado. Portanto, tolerar a imoralidade no meio da comunidade é uma contradição gritante com o propósito do sacrifício de Jesus.
Isso tem uma aplicação direta para a celebração da Ceia do Senhor. Se a Ceia é a nossa celebração do Cordeiro Pascal, é uma contradição participar dela enquanto se vive deliberadamente em pecado, sem arrependimento. A vida cristã é comparada a uma festa contínua, que deve ser celebrada "não com o fermento velho, nem com o fermento do mal e da maldade, mas com os pães sem fermento da sinceridade e da verdade" (1 Co 5:8). Para que essa festa pudesse continuar de forma íntegra, era imperativo que o infrator fosse removido.
4. Princípio 2: A Necessidade de Santa Separação
O segundo princípio que Paulo estabelece é a necessidade de uma separação santa e criteriosa. Ele demonstra que a arrogância dos coríntios gerou uma miopia espiritual, levando-os a cometer dois erros opostos: dividiram-se em partidos quando deveriam permanecer unidos em Cristo, e uniram-se em tolerância ao pecado quando deveriam ter se separado do malfeitor. Havia, portanto, um momento para uma separação legítima que eles não souberam discernir.
O Esclarecimento de uma Ordem Mal Interpretada
Paulo revela que esta não era a primeira vez que abordava o tema. Em uma carta anterior, que se perdeu, ele já os havia instruído a não se associarem com pessoas impuras. A persistência do problema mostrava que a igreja era reincidente. No entanto, os coríntios, seja por ignorância ou malícia, distorceram completamente o sentido dessa orientação. Eles interpretaram que Paulo os proibia de ter qualquer tipo de contato com os incrédulos do mundo — os imorais, avarentos, ladrões ou idólatras.
Essa interpretação equivocada levava a uma postura de "gueto", um isolamento completo da sociedade. Paulo corrige isso enfaticamente, afirmando que tal atitude seria impraticável:
"...pois, nesse caso, vocês teriam de sair do mundo" (1 Co 5:10).
Cristãos no Mundo, Mas Não do Mundo
A vontade de Deus nunca foi que a Igreja vivesse em uma bolha, reclusa da sociedade. A própria oração de Cristo em João 17 confirma isso:
"Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal."
Os cristãos são chamados para ser sal e luz, o que exige presença e contato com a cultura ao redor, por mais corrompida que seja. É na interação com o mundo que a Igreja exerce seu testemunho. Através da graça comum, Deus permite que a sociedade funcione, e os cristãos participam dela em diversas esferas: nos negócios, nos serviços e nas relações cotidianas. A separação do mundo não significa ausência de contato, mas renúncia aos seus padrões pecaminosos quando eles entram em conflito com a Palavra de Deus.
A Verdadeira Separação: Dos Falsos Irmãos
Após corrigir a interpretação errada, Paulo revela o verdadeiro alvo de sua advertência. Sua ordem de separação é muito mais rigorosa e se aplica àqueles que estão dentro da igreja:
"Mas, agora, escrevo a vocês que não se associem com alguém que, dizendo-se irmão, for devasso, ou avarento, ou idólatra, ou maldizente, ou bêbado, ou ladrão. Com tal pessoa, nem mesmo comam" (1 Co 5:11).
O rigor é maior não com o ímpio de fora, mas com aquele que professa a fé em Cristo e, ao mesmo tempo, vive uma vida que a nega. A presença de um "irmão" que persiste no pecado sem arrependimento é um escândalo muito mais danoso ao testemunho do Evangelho do que a conduta de um incrédulo.
O comando "nem mesmo comam com alguém assim" tinha um peso imenso. Na cultura da época, compartilhar uma refeição era o maior sinal de comunhão, fraternidade e aceitação. Paulo se referia especificamente à "Festa do Ágape", a refeição comunitária que a igreja primitiva realizava e durante a qual a Ceia do Senhor era celebrada. Excluir alguém dessa refeição era, portanto, excluí-lo do coração da vida da igreja e do seu símbolo máximo de unidade. Era a materialização da disciplina, removendo da comunhão visível aquele que comprometia a pureza da comunidade.
5. Princípio 3: O Chamado para Julgar os de Dentro
O terceiro princípio estabelecido por Paulo define claramente a esfera de autoridade e responsabilidade da igreja. Ele traça uma linha nítida entre o papel da comunidade cristã em relação aos seus membros e em relação àqueles que estão fora dela.
A Jurisdição Limitada da Igreja
Paulo inicia com uma pergunta retórica que delimita sua jurisdição:
"Pois com que direito haveria eu de julgar os de fora?" (1 Co 5:12).
A Igreja não foi chamada para ser a juíza moral do mundo. Sua missão para com os não-crentes não é de condenação, mas de evangelização: pregar o Evangelho, chamar ao arrependimento e oferecer o perdão encontrado em Cristo. A autoridade para exercer disciplina não se estende àqueles que não se submeteram a Cristo e à sua Igreja. O juízo final sobre os que estão fora pertence exclusivamente a Deus.
O Dever de Julgar os de Dentro
Em contrapartida, Paulo afirma a responsabilidade da igreja para com sua própria casa:
"Será que vocês não devem julgar os de dentro?" (1 Co 5:12).
A resposta implícita é um sonoro "sim". Manter a pureza da comunidade, corrigir os que erram e zelar pela saúde espiritual do corpo de Cristo é um dever intrínseco da Igreja. Quando uma pessoa se torna membro, ela se submete voluntariamente aos princípios bíblicos e à supervisão da comunidade. Portanto, ela se torna responsável perante seus irmãos pela vida que leva e pela fé que professa publicamente.
Desmistificando o "Não Julgueis"
Neste ponto, a instrução de Paulo confronta diretamente o uso equivocado do mandamento de Jesus, "Não julgueis". Muitas vezes, essa passagem é retirada de seu contexto para bloquear qualquer tentativa de correção ou disciplina na igreja. No entanto, a Bíblia não proíbe todo tipo de julgamento, mas sim o julgamento hipócrita. Jesus condena aquele que aponta o cisco no olho do irmão sem antes remover a trave do seu próprio olho. A proibição é contra a arrogância e a falta de autoexame, não contra a responsabilidade de zelar pela santidade da comunidade.
O julgamento que a Igreja é chamada a exercer não é sobre as intenções ocultas do coração — que somente Deus conhece —, mas sobre atos externos e comportamentos públicos que contradizem a Palavra de Deus. A conclusão final de Paulo é, portanto, inevitável e direta, demonstrando a seriedade da situação ao nem mesmo usar mais o termo "irmão":
"Os de fora, Deus os julgará. Expulsem o malfeitor do meio de vocês" (1 Co 5:13).
6. A Urgência da Disciplina e Suas Razões
A veemência e o rigor com que o apóstolo Paulo trata a questão da imoralidade em Corinto não são arbitrários. Havia razões urgentes para uma intervenção imediata e decisiva. Primeiramente, o pecado era público, um escândalo conhecido não apenas dentro da comunidade, mas também por outras igrejas e pela sociedade pagã, trazendo desonra ao nome de Cristo. Em segundo lugar, a igreja era reincidente, já tendo sido advertida por Paulo em uma carta anterior sobre a necessidade de se afastar daqueles que viviam no pecado enquanto se diziam cristãos.
O princípio do "fermento que leveda toda a massa" aplica-se tanto à vida comunitária quanto à vida individual. Um pecado que é tolerado em nosso coração, que não é tratado e vai sendo adiado, racionalizado ou acomodado, mais cedo ou mais tarde irá contaminar toda a nossa consciência. Ele enfraquece nossas defesas morais, e em pouco tempo nos veremos tolerando atitudes e pensamentos que um dia consideraríamos inaceitáveis como cristãos.
Por isso, a resposta ao pecado deve ser radical e imediata, tanto na igreja quanto no coração. A ordem para "expulsar o malfeitor do meio de vocês" ecoa como um chamado pessoal para "expulsar o malfeitor do seu coração". Não se deve abrigar, encorajar ou dar oportunidade ao pecado. A única atitude segura é fugir dele, tratando-o na raiz antes que ele cresça e comprometa toda a nossa vida espiritual.
Augustus Nicodemus. 13. Princípios para tratar com o pecado (1Co 5.6-23). Disponível em: https://youtu.be/ICgyFp3_fxs?si=YHisOvo5X7Sw54CO. Acesso em: 21/09/2025.