1. O Contexto da Divisão em Corinto: A Raiz da Carnalidade e do Culto à Personalidade

Nos quatro primeiros capítulos da sua primeira carta à igreja de Corinto, o apóstolo Paulo dedica-se a tratar de um problema grave que ameaçava a unidade da comunidade: a divisão. Essa fratura interna não era causada por divergências doutrinárias profundas, mas pela criação de partidos que se formavam em torno de personalidades proeminentes da história recente da igreja. Havia ao menos quatro grupos distintos: aqueles que se declaravam seguidores de Paulo, o fundador da igreja; os de Apolo, o eloquente pastor que o sucedeu; os de Pedro, que, embora provavelmente nunca tenha estado em Corinto, era reconhecido como o líder do colégio apostólico em Jerusalém; e, por fim, um grupo que, numa aparente superioridade espiritual, afirmava pertencer unicamente a Cristo, rejeitando qualquer liderança humana.

O erro, como Paulo aponta, não residia em ter líderes como referência ou preferência, mas na atitude idólatra que os coríntios haviam adotado. Eles transferiram para os pregadores do evangelho a mesma mentalidade que, antes de sua conversão, dedicavam aos filósofos, retóricos e sofistas de sua cultura. Na cidade de Corinto, era comum que mestres do pensamento atraíssem discípulos através de palavras bem elaboradas, frases de efeito e um apelo às emoções, muitas vezes com o objetivo de angariar recursos. Essa mesma devoção partidária, esse culto à personalidade, estava agora sendo replicado dentro da igreja, a ponto de os crentes afirmarem com orgulho: "eu sou de Paulo" ou "eu sou de Apolo".

Paulo combate essa atitude veementemente, indo à raiz do problema. Ele diagnostica essa conduta como um sintoma de carnalidade e infantilidade espiritual. Os coríntios ainda não haviam compreendido o verdadeiro significado da cruz e suas profundas implicações para a vida cristã. A cruz, para Paulo, é o veredito final de Deus sobre a arrogância humana. Se Deus revelou a condição da humanidade ao pendurar seu representante numa cruz, então um verdadeiro discípulo do Crucificado não pode se gloriar em homens ou exaltar personalidades. Fazer comparações entre pregadores para certificar suas próprias predileções era uma prova de imaturidade e um desvio do evangelho. Por trás dessa disputa, fermentava também uma rejeição sutil à autoridade apostólica de Paulo, um tema que ele começaria a desconstruir com fina ironia e poderosa argumentação.


2. A Perspectiva Correta: Servos de Cristo e Administradores dos Mistérios de Deus

Ao adentrar o capítulo 4, o apóstolo Paulo afunila sua argumentação, conferindo-lhe um viés mais pessoal. Ele passa a instruir os coríntios sobre a maneira correta como ele, Apolo, Pedro e os demais obreiros deveriam ser considerados. O objetivo é substituir a avaliação carnal, baseada em critérios humanos, pela perspectiva divina. Ele estabelece essa nova base no primeiro versículo:

"Assim, pois, importa que todos nos considerem como ministros de Cristo e encarregados dos mistérios de Deus." (1 Coríntios 4:1)

Paulo oferece duas designações fundamentais que redefinem o papel do líder espiritual. A primeira é "ministros de Cristo". A palavra original para "ministro" aqui não evoca status ou poder, mas simplesmente "servo". Um ministro é alguém que serve, que atua sob a autoridade de outro. Ao se apresentar como um simples servo de Cristo, Paulo rebaixa a si mesmo e aos outros líderes do pedestal em que foram colocados. A mensagem é clara: se todos são apenas servos do mesmo Senhor, não há base para a criação de partidos rivais em torno deles.

A segunda designação é "encarregados dos mistérios de Deus". O termo "encarregado" corresponde diretamente à figura do "mordomo" ou administrador de uma grande propriedade nos lares greco-romanos da época. O mordomo era o servo de maior confiança, responsável por gerenciar as finanças, as propriedades e até mesmo os outros escravos de seu patrão. Ele não possuía absolutamente nada, mas controlava quase tudo, exercendo uma vasta autoridade que era, contudo, inteiramente delegada. Sua principal obrigação era para com seu mestre, a quem devia prestar contas de sua administração.

É exatamente assim que Paulo se via: um mordomo dos "mistérios de Deus". E que mistérios são esses? Como já explorado nos capítulos anteriores, o grande mistério é o plano divino para a redenção do mundo através de Jesus Cristo crucificado. É chamado de "mistério" porque não foi plenamente revelado no Antigo Testamento e porque a mente humana, sem a iluminação do Espírito Santo, é incapaz de compreendê-lo. Portanto, a tarefa de Paulo, Apolo e Pedro era simplesmente administrar e expor fielmente essa verdade revelada. Eles não trabalhavam para sua própria glória ou promoção pessoal, mas para tornar conhecido o seu Mestre e o plano de salvação que lhes foi confiado.


3. O Requisito Essencial: A Fidelidade como Medida de Valor no Ministério

Se os líderes espirituais são servos de Cristo e mordomos de Seus mistérios, qual é, então, o critério pelo qual devem ser avaliados? Paulo responde de forma direta e transformadora, estabelecendo uma medida de valor que subverte completamente os padrões humanos de sucesso que os coríntios aplicavam.

"Ora, além disso, o que se requer desses encarregados é que cada um deles seja encontrado fiel." (1 Coríntios 4:2)

A única qualidade que se requer de um servo e de um mordomo a quem foram confiados os bens de seu patrão é a fidelidade. Não é o sucesso, a popularidade, a fama, o renome ou o destaque. Deus não está à procura de ministérios com igrejas enormes ou com milhões de seguidores em redes sociais; Ele procura servos fiéis. A vocação divina não é para o êxito, mas para a fidelidade, e é essa qualidade que Deus buscará em seus obreiros no dia da prestação de contas.

Essa fidelidade se manifesta em duas dimensões cruciais. Primeiro, a fidelidade ao Patrão, que significa honrar a Deus, respeitar a Cristo e seguir Suas ordens com diligência. Segundo, a fidelidade na exposição dos mistérios, que exige do obreiro um compromisso inabalável com as Escrituras. O pastor não é um inventor ou criador de novas ideias; sua tarefa é ensinar a verdade, combater o erro e preservar a revelação divina como ela foi dada, com clareza e simplicidade, buscando sempre a promoção do Reino de Deus, e não a sua própria.

Essa ênfase na fidelidade ecoa o ensinamento do próprio Jesus, provavelmente registrado na parábola do servo infiel, em Lucas 12:42-46. Nessa passagem, Jesus utiliza os mesmos termos — "mordomo", "fiel" e "encarregado" — para descrever o servo a quem o senhor confia o cuidado da casa. O servo que cumpre sua função é chamado de "bem-aventurado", mas aquele que abusa de sua posição, maltratando os outros servos e vivendo de forma negligente, recebe um castigo severo. A aplicação é direta: pastores que se alimentam do rebanho em vez de alimentá-lo, que o dispersam e abusam dele, são servos infiéis.

A centralidade deste princípio é tão vital que pode moldar uma vida inteira de ministério. Augustus Nicodemus compartilha uma anedota pessoal e marcante sobre como essa lição foi gravada em sua formação. O versículo de 1 Coríntios 4:2 era um dos que seu sogro e reitor do seminário, o Reverendo Francisco Leonardo, obrigava os alunos a memorizarem. A palavra grega para "fiel", pistos, foi a primeira que aprenderam. Em dias de prova, o reverendo entrava na sala, entregava os exames e, antes de sair, instruía os cerca de 40 alunos apreensivos: "Escreva no alto da sua prova agora: pistos". Após todos escreverem a palavra, ele se virava e os deixava sozinhos. A mensagem era implícita e poderosa: se você não consegue ser fiel no pouco, como em uma prova, como poderá assumir a responsabilidade do ministério pastoral? A lição era clara: o que Deus requer, acima de tudo, é que Seus servos sejam encontrados fiéis.


4. A Insignificância do Julgamento Humano: A Visão de Paulo Sobre a Avaliação Terrena

Após estabelecer a fidelidade como o critério divino, Paulo faz uma declaração surpreendente e radical sobre o valor que atribuía aos vereditos humanos, inclusive o seu próprio. Ele desconsidera as avaliações que tanto preocupavam os coríntios, apontando para um tribunal superior.

"Mas a mim pouco importa ser julgado por vocês ou por um tribunal humano; nem eu julgo a mim mesmo. Porque a consciência não me acusa de nada, mas nem por isso me dou por justificado, pois quem me julga é o Senhor." (1 Coríntios 4:3-4)

À primeira vista, a afirmação "pouco me importa ser julgado por vocês" pode soar como arrogância ou um desprezo pela necessidade de um bom testemunho. No entanto, não se trata disso. Paulo não está defendendo uma espiritualidade individualista onde a opinião da comunidade é irrelevante. Em sua carta aos Tessalonicenses, por exemplo, ele faz questão de lembrar os crentes de seu comportamento piedoso e irrepreensível, afirmando: "Vocês e Deus são testemunhas" (1 Tessalonicenses 2:10). Isso demonstra que, em circunstâncias normais, ele se preocupava com a percepção que os outros tinham de seu ministério.

O caso de Corinto, porém, era diferente. Havia um fator complicador: uma forte e hostil rejeição à sua autoridade apostólica. Parte da igreja o questionava com base em critérios superficiais: ele não era um dos doze apóstolos originais, ministrava primariamente aos gentios, e sua vida era marcada por sofrimentos, prisões e perseguições — algo que, para a mentalidade deles, parecia mais um sinal de fraqueza do que de aprovação divina. Diante de um julgamento já formado e mal-intencionado, Paulo declara que essa avaliação humana e parcial já não lhe importava mais. A opinião deles estava contaminada.

Mais profundamente, Paulo estende essa desconfiança até mesmo à sua própria autoavaliação: "nem eu julgo a mim mesmo". Ele reconhece a falibilidade da consciência humana. Embora a consciência sirva como um guia moral, o pecado a afetou, tornando-a, por vezes, fraca ou até "cauterizada", como a Bíblia descreve em outros lugares. Paulo afirma que sua consciência está limpa das acusações que lhe faziam, mas ele sabe que isso não é o veredito final. A ausência de culpa sentida não equivale à justificação plena, pois o coração humano é um "poço escuro", com motivações que nem sempre conseguimos discernir com clareza. Há Alguém que o conhece mais profundamente do que ele mesmo: o Senhor. Portanto, se nem a avaliação de uma consciência limpa é definitiva, quanto menos o julgamento falho e enviesado de outras pessoas.


5. O Tribunal de Cristo: O Dia em que Deus Revelará as Intenções do Coração

Se o julgamento dos homens é falho e a autoavaliação é insuficiente, a única instância que resta é o tribunal de Cristo. É para esse dia final e definitivo que Paulo aponta, exortando os coríntios a cessarem seus julgamentos prematuros e a confiarem na avaliação perfeita de Deus.

"Portanto, não julguem nada antes do tempo, até que venha o Senhor, o qual não somente trará à plena luz as coisas ocultas das trevas, mas também manifestará os desígnios dos corações; e, então, cada um receberá o seu louvor da parte de Deus." (1 Coríntios 4:5)

A ordem para "não julgar" precisa ser bem compreendida. Paulo não está proibindo toda e qualquer forma de discernimento. A própria instrução para buscar a fidelidade nos obreiros implica um tipo de avaliação. A igreja tem o dever de julgar o "fórum externo": as ações, as pregações, as escolhas e a fidelidade doutrinária de seus líderes. O que é terminantemente proibido é invadir o "fórum íntimo", a esfera da consciência e das motivações secretas, pois somente Deus tem jurisdição sobre o coração humano.

O apóstolo, então, descreve o que acontecerá no dia do juízo. O Senhor trará à luz "as coisas ocultas das trevas", uma expressão poderosa que se refere aos pensamentos e motivações noturnos, subterrâneos, invisíveis a olho nu. Além disso, Ele "manifestará os desígnios dos corações", ou seja, revelará as intenções mais íntimas que impulsionaram cada ato, seja ele bom ou mau. Como disse o profeta Jeremias, "enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto; quem o conhecerá? Eu, o Senhor, esquadrinho o coração". Apenas no tribunal de Cristo o quadro completo será revelado.

Nesse dia, um ministério que pareceu pequeno e infrutífero aos olhos humanos poderá ser revelado como um exemplo de extraordinária fidelidade, enquanto outro, de aparente sucesso, poderá ter suas fundações de orgulho e autopromoção expostas. É por isso que o julgamento humano é tão perigoso e prematuro. Somente quando Deus revelar os segredos mais obscuros e as intenções mais profundas é que cada um receberá o seu verdadeiro louvor, não dos homens, mas "da parte de Deus". Esta é uma advertência solene, especialmente para aqueles em posição de liderança, que, como lembra Tiago, receberão "um juízo ainda maior".


Augustus Nicodemus. 09. O Julgamento dos Obreiros (1Co 4.1-5). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=em__NjTl-8g. Acesso em: 01/09/2025.

Avatar de diego
há 5 dias
Matéria: Bíblia
Artigo

0 Comentários

Nenhum comentário. Seja o primeiro a comentar!

Você precisa entrar para comentar.
Pergunte à IA