Introdução: O Cristão e a Lei Mosaica – Uma Relação Didática, não Normativa

Uma das questões mais complexas para o cristão é definir seu relacionamento com o Antigo Testamento. Devemos guardar o sábado? As leis cerimoniais ainda se aplicam? Os Dez Mandamentos são a única parte que permanece? Frequentemente, surgem tentativas de dividir a Lei em partes "morais", "civis" e "cerimoniais", sugerindo que seguimos algumas e descartamos outras.

No entanto, uma abordagem teológica mais alinhada à Nova Aliança argumenta de forma diferente: a totalidade da Lei Mosaica, como uma aliança, cumpriu seu propósito e não é mais normativa para o cristão. Isso significa que não estamos mais debaixo de sua autoridade ou obrigação direta para salvação ou santificação.

Contudo, isso não torna o Antigo Testamento obsoleto. Pelo contrário, a Lei permanece profundamente didática. Ela é a sombra inspirada daquilo que Cristo revelou plenamente. Seguimos toda a Lei em seu sentido didático – ela nos ensina sobre o caráter de Deus, a gravidade do pecado e a necessidade de um Redentor. Mas não seguimos nada dela em seu sentido normativo, pois nossa norma agora é a "lei de Cristo", revelada na Nova Aliança.

Este artigo explorará como o próprio Antigo Testamento previa essa transição e como a epístola aos Hebreus demonstra categoricamente que a Antiga Aliança foi superada, revogada e substituída por uma Aliança superior, firmada em promessas superiores.


O Próprio Antigo Testamento Anunciava Suas Limitações

Muito antes da vinda de Cristo, os profetas de Israel já eram usados por Deus para expor a fraqueza fundamental da Antiga Aliança. O problema não estava na Lei em si (que é santa, justa e boa, como Paulo afirmaria), mas na sua incapacidade de transformar o coração humano endurecido.

O povo de Israel, repetidamente, se apegava aos rituais externos da Lei Mosaica enquanto vivia em rebelião e injustiça. Eles tratavam o sacrifício como um pagamento pelo pecado que lhes dava permissão para continuar pecando, em vez de um símbolo de arrependimento.

Deus confrontou duramente essa hipocrisia. Em Isaías, o Senhor chega a expressar nojo dos rituais que Ele mesmo havia ordenado, pois eram oferecidos sem um coração justo:

"De que me serve a multidão de vossos sacrifícios? — diz o SENHOR. Estou farto dos holocaustos de carneiros e da gordura de animais cevados; e não me agrado do sangue de novilhos, nem de cordeiros, nem de bodes." (Isaías 1:11, Almeida Revista e Atualizada - ARA)

Essa é uma declaração chocante. O sistema sacrificial era o centro da adoração levítica (Levítico 1-7). No entanto, Deus revela que, sem obediência e justiça, esses atos eram vazios e inúteis.

O profeta Jeremias é ainda mais enfático, usando uma linguagem de prioridade para mostrar o que Deus realmente desejava desde o início:

"Porque, no dia em que os tirei da terra do Egito, não lhes falei, nem lhes ordenei coisa alguma acerca de holocaustos ou sacrifícios. Mas isto lhes ordenei: Dai ouvidos à minha voz, e eu serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo; andai em todo o caminho que eu vos ordenar, para que vos vá bem." (Jeremias 7:22-23, ARA)

Isso não é uma negação literal de que Deus deu as leis sacrificiais, mas uma hipérbole profética para enfatizar um ponto crucial: a obediência relacional ("Dai ouvidos à minha voz") era o fundamento da aliança, não o ritual. O ritual só tinha sentido dentro da fidelidade.

Miquéias resume perfeitamente o que o Senhor buscava, contrastando o ritualismo exagerado com a verdadeira piedade:

"Com que me apresentarei ao SENHOR e me inclinarei ante o Deus excelso? (...) Ele te declarou, ó homem, o que é bom; e que é o que o SENHOR pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus." (Miquéias 6:6a, 8, ARA)

Esses textos revelam a "fraqueza" da Antiga Aliança: suas instituições externas não podiam, por si mesmas, mudar o coração de pedra do povo. Isso estabeleceu a necessidade absoluta de uma intervenção divina diferente, uma Nova Aliança que fizesse o que a primeira não poderia fazer.


A Promessa de Jeremias: Uma Nova Aliança, "Não Segundo" a Primeira

Diante da falha contínua de Israel em obedecer e da incapacidade da Lei Mosaica de transformar seus corações, Deus não prometeu simplesmente "tentar de novo" com a mesma aliança. Ele prometeu algo radicalmente novo. O profeta Jeremias, o mesmo que diagnosticou a falha do povo, foi o porta-voz desta promessa gloriosa.

Deus declara explicitamente que a aliança vindoura será diferente daquela feita no Sinai, precisamente porque a aliança do Sinai foi quebrada pelo povo:

"Eis aí vêm dias, diz o SENHOR, em que firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá. Não segundo a aliança que fiz com seus pais, no dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito; pois eles invalidaram a minha aliança, apesar de eu os haver desposado, diz o SENHOR. Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o SENHOR: Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo." (Jeremias 31:31-33, ARA)

Vamos analisar a profundidade deste texto:

  1. É uma "Nova Aliança": Deus usa a palavra "nova" (Hebraico: chadashah), indicando algo fresco, que não existia antes.
  2. "Não Segundo a Aliança...": O texto é inequívoco. Deus define a Nova Aliança por aquilo que ela não é: ela não é como a Aliança Mosaica ("que fiz com seus pais... no dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito"). A razão para a mudança é clara: "pois eles invalidaram a minha aliança".
  3. A Mudança Fundamental (Interna vs. Externa): A Antiga Aliança foi gravada externamente em tábuas de pedra. A Nova Aliança é internalizada. Deus promete: "Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei". O problema do coração de pedra, que os profetas tanto lamentaram, seria finalmente resolvido.

Essa promessa não é de uma simples renovação ou reforço da Lei Mosaica. É a promessa de uma aliança diferente em sua natureza e em seus termos, que alcançaria o que a primeira não pôde: a verdadeira transformação interna e a obediência gerada pelo próprio Deus no coração do seu povo.


A Mudança Necessária da Lei pela Mudança do Sacerdócio (Hebreus 7)

A epístola aos Hebreus apresenta o argumento mais decisivo sobre o fim da Antiga Aliança. O autor demonstra que a Lei Mosaica e o sacerdócio levítico (descendentes de Arão) eram um sistema único e inseparável. A Lei estabeleceu o sacerdócio, e o sacerdócio administrou a Lei.

O ponto crucial do argumento é: se o sacerdócio muda, a lei atrelada a ele necessariamente também deve mudar.

O autor de Hebreus mostra que Jesus Cristo é o nosso Sumo Sacerdote, mas Ele não veio da tribo de Levi, que era a tribo sacerdotal designada pela Lei. Jesus veio "procedeu de Judá" (Hebreus 7:14) e seu sacerdócio é "segundo a ordem de Melquisedeque" (Hebreus 7:17), um sacerdócio superior e eterno.

Essa mudança fundamental de sacerdócio tem uma consequência legal direta e inevitável:

"Pois, quando se muda o sacerdócio, necessariamente há também mudança da lei." (Hebreus 7:12, ARA)

Este versículo é o centro da tese. Não se pode manter a Lei Mosaica e, ao mesmo tempo, aceitar o sacerdócio de Cristo. Os dois sistemas são mutuamente excludentes. A Lei Mosaica não previa e não tinha lugar para um sacerdote de Judá. A ascensão de Cristo como nosso Sumo Sacerdote não apenas reforma o sistema antigo; ela o substitui.

O autor continua, descrevendo explicitamente o que acontece com a antiga ordenança (a Lei):

"Portanto, por um lado, se revoga a anterior ordenança por causa da sua fraqueza e inutilidade (pois a lei nunca aperfeiçoou coisa alguma); e, por outro lado, se introduz esperança superior, pela qual nos chegamos a Deus." (Hebreus 7:18-19, ARA)

A linguagem é forte e clara: a "anterior ordenança" (a Lei) é "revogada" (Grego: athetēsis, significando anulação, cancelamento) por ser "fraca e inútil" – não porque fosse pecaminosa, mas porque era ineficaz para "aperfeiçoar" (levar à perfeição, completar) o adorador ou remover verdadeiramente o pecado.

Assim, a mudança do sacerdócio de Arão para Cristo não é uma mera atualização; é a revogação da Lei Mosaica para a introdução de uma "esperança superior" baseada em um Sacerdote superior e uma Aliança superior.


"Fraca e Inútil": Por que a Lei foi Revogada e Superada (Hebreus 8 e 10)

O autor aos Hebreus, após estabelecer a necessidade da mudança da Lei no capítulo 7, usa o capítulo 8 para citar diretamente a profecia de Jeremias 31. Ele aplica essa promessa diretamente ao ministério de Jesus, declarando que a "Nova Aliança" prometida é aquela que Cristo inaugurou.

Ao fazer isso, ele sela o destino da Antiga Aliança, explicando seu status atual à luz da revelação de Cristo. Este é um dos versículos mais claros em toda a Escritura sobre o fim da Aliança Mosaica:

"Quando ele diz ‘nova aliança’, torna antiquada a primeira. Ora, aquilo que se torna antiquado e envelhecido está prestes a desaparecer." (Hebreus 8:13, ARA)

A profecia de Jeremias, feita séculos antes, já havia tornado a Primeira Aliança "antiquada" (obsoleta, velha). A vinda de Cristo foi o evento que a fez "desaparecer" por completo, cumprindo seu propósito e sendo substituída.

O capítulo 10 aprofunda por que ela precisava desaparecer. A Lei era apenas uma "sombra", não a realidade. Seus sacrifícios repetitivos eram uma lembrança constante do pecado, mas nunca podiam removê-lo.

"Ora, visto que a lei é apenas uma sombra dos bens vindouros, não a imagem real das coisas, nunca consegue aperfeiçoar aqueles que se aproximam de Deus com os mesmos sacrifícios que, ano após ano, continuamente eles oferecem." (Hebreus 10:1, ARA)

A Lei era uma "parábola para a época presente" (Hebreus 9:9). Ela lidava com "ordenanças da carne" (Hebreus 9:10) – comidas, bebidas, purificações externas – que não podiam limpar a consciência. Sua função era apontar para o futuro.

Quando Cristo veio, a realidade chegou, e a sombra não era mais necessária. O sacrifício de Jesus foi único, final e perfeito. Por isso, o autor conclui com uma declaração poderosa sobre essa substituição definitiva. Ao citar o Salmo 40, o autor coloca estas palavras na boca de Cristo, mostrando a transição divina da Aliança da Lei para a Aliança da Vontade (em Cristo):

"Depois de dizer, como acima: Sacrifícios, ofertas, holocaustos e ofertas pelo pecado não quiseste, nem deles te agradaste (coisas que se oferecem segundo a lei), então acrescentou: Eis aqui estou para fazer, ó Deus, a tua vontade. Remove ele o primeiro, para estabelecer o segundo." (Hebreus 10:8-9, ARA)

A conclusão é inegável: Deus "remove o primeiro" (o sistema da Lei, com seus sacrifícios) para "estabelecer o segundo" (a obra redentora de Cristo, baseada na perfeita obediência à Sua vontade). A Antiga Aliança não foi reformada; foi removida e substituída por algo infinitamente superior.


Conclusão: Removendo o Primeiro para Estabelecer o Segundo em Cristo

A jornada das Escrituras é clara: a Antiga Aliança, centrada na Lei Mosaica, foi divinamente instituída como uma "sombra dos bens vindouros" (Hebreus 10:1). Ela cumpriu perfeitamente seu propósito de revelar a santidade de Deus, diagnosticar a profundidade do pecado humano e apontar para a necessidade de um Salvador.

Como vimos, os próprios profetas do Antigo Testamento, como Isaías e Jeremias, expuseram a incapacidade daquela aliança de mudar o coração. Foi o próprio Deus quem prometeu uma "Nova Aliança", uma que seria "não segundo" a primeira (Jeremias 31:32) e que estaria inscrita nos corações, e não em tábuas de pedra.

A epístola aos Hebreus serve como o comentário inspirado definitivo sobre essa transição. Ela nos ensina que, com a vinda de Jesus – nosso Sumo Sacerdote superior, segundo a ordem de Melquisedeque – a Lei atrelada ao sacerdócio levítico foi necessariamente mudada (Hebreus 7:12). Não foi apenas ajustada, mas "revogada" (Hebreus 7:18) por ser "antiquada" (Hebreus 8:13).

O veredito final é que Deus "remove o primeiro, para estabelecer o segundo" (Hebreus 10:9).

Para o cristão, portanto, a Lei Mosaica não é mais normativa. Não estamos sob sua autoridade ou obrigação. Nossa autoridade é a Nova Aliança, selada com o sangue de Jesus. A Lei Mosaica, no entanto, permanece eternamente didática e divinamente inspirada. Nela, aprendemos sobre o caráter imutável de Deus, entendemos a profundidade da nossa redenção e vemos as sombras que encontram sua substância e realidade na pessoa de Jesus Cristo.


Dois Dedos de Teologia. A LEI DO ANTIGO TESTAMENTO ACABOU. Yago Martins. Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=X-TDkJUuV0E

Avatar de diego
há 1 semana
Matéria: Bíblia
Artigo

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