1. O Contexto de Romanos 1: O Abandono da Verdade de Deus
Para compreender a profunda advertência contida nos versículos 26 e 27 da carta aos Romanos, é crucial entender o argumento que o Apóstolo Paulo constrói desde o início do capítulo. Paulo estabelece uma premissa universal: toda a humanidade, pagã ou não, está sob a condenação de Deus, não por falta de oportunidade de conhecê-lO, mas por uma supressão deliberada da verdade.
Deus, afirma Paulo, revelou-Se claramente através da criação. A ordem do universo e a consciência inata no coração humano testemunham de Seu poder eterno e divindade. No entanto, a humanidade escolheu ativamente rejeitar essa revelação.
Pois o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os seus atributos invisíveis, o seu eterno poder e a sua divindade, se veem claramente desde a criação do mundo, sendo percebidos por meio das coisas criadas, de modo que eles são indesculpáveis; porquanto, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, e o seu coração insensato se obscureceu. (Romanos 1:19-21, Almeida Revista e Atualizada - ARA)
Essa rejeição da verdade não levou a um vácuo, mas a uma troca trágica: a adoração ao Criador foi substituída pela adoração à criatura. Isso é a essência da idolatria.
e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, e de aves, e de quadrúpedes, e de répteis. (Romanos 1:23, ARA)
É aqui que Paulo introduz um conceito teológico fundamental: o juízo de Deus como um ato de "entrega". Como castigo por essa rebelião idólatra, Deus remove Sua graça restritiva e entrega a humanidade às consequências naturais de suas próprias escolhas corruptas. A humanidade abandonou Deus e, como juízo, Deus a abandona às suas próprias paixões.
pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém! (Romanos 1:25, ARA)
As paixões infames mencionadas nos versículos 26 e 27 não surgem, portanto, como um pecado isolado, mas como a consequência direta e a evidência visível desse abandono inicial da verdade de Deus.
2. A Inversão da Ordem Criada (Romanos 1:26-27)
Como resultado direto do juízo de Deus ("Por causa disso"), que entregou a humanidade às suas próprias concupiscências, o Apóstolo Paulo apresenta o que ele define como uma inversão fundamental da ordem estabelecida na criação. Ele descreve essa inversão começando pelas mulheres e, em seguida, abordando os homens.
Por causa disso, os entregou Deus a paixões infames. Porque até as suas mulheres mudaram o modo natural de suas relações íntimas por outro, contrário à natureza. (Romanos 1:26, ARA)
Paulo é específico ao usar a terminologia "modo natural" (do grego physikós). A base para o que é "natural" no argumento paulino não é a inclinação pessoal ou o desejo sentido, mas a ordem designada por Deus na criação, conforme Gênesis. Deus criou a humanidade como "macho e fêmea" (Gênesis 1:27), estabelecendo o relacionamento heterossexual dentro do casamento como o padrão para a intimidade sexual e a propagação.
Ao descrever a prática como "contrária à natureza" (para physin), Paulo a posiciona como uma desonra ao propósito original do corpo, uma consequência da desordem espiritual (a idolatria) que agora se manifesta na desordem física e relacional.
O apóstolo, então, aplica o mesmo princípio aos homens, usando uma linguagem ainda mais enfática para descrever a reciprocidade da ação:
Semelhantemente, os homens também, deixando o contato natural da mulher, se inflamaram mutuamente em sua sensualidade, cometendo torpeza, homens com homens, e recebendo em si mesmos a merecida punição do seu erro. (Romanos 1:27, ARA)
Paulo identifica vários elementos nessa ação:
- Abandono do Natural: Assim como as mulheres, os homens "deixaram o contato natural da mulher".
- Inflamação Mútua: O desejo é descrito como uma "inflamação" mútua, um fogo consumidor que se desvia do seu propósito designado.
- Cometendo Torpeza: O ato em si é classificado como "torpeza" (em grego, aschēmosynē), que significa um ato vergonhoso ou indecente.
- O Erro e sua Punição: Paulo o chama de "erro" e afirma que a "merecida punição" é recebida "em si mesmos" – um ponto que será explorado mais adiante.
É crucial notar que Paulo, ao escrever este texto, não estava refletindo um preconceito cultural de sua época. Pelo contrário, a cultura greco-romana em que ele vivia era amplamente tolerante, e em certos círculos até encorajava, práticas homossexuais (como a pederastia). A condenação de Paulo não era cultural; era teológica, fundamentada na ordem da criação divina. Ele estava indo contra a cultura dominante, e não simplesmente repetindo-a.
3. Desafios e Interpretações Modernas
Nos dias atuais, a clareza da condenação de Paulo em Romanos 1:26-27 enfrenta forte resistência, levando ao surgimento de várias tentativas de reinterpretação que buscam anular sua aplicação. Esses argumentos, muitas vezes associados à "teologia inclusiva", procuram desarmar o texto bíblico de sua autoridade moral sobre o assunto.
Uma das objeções mais comuns é a de que Paulo estaria apenas condenando relações abusivas, violentas ou ligadas à pederastia (relações entre homens adultos e meninos), que eram comuns na cultura greco-romana, e não relações homoafetivas monogâmicas e consensuais. No entanto, o texto não oferece tal distinção. A linguagem de Paulo é universal: ele condena a prática em si como "contrária à natureza", independentemente do contexto de abuso, fidelidade ou idolatria cultual (como a prostituição cultual do Antigo Testamento). O apóstolo se refere a "mulheres com mulheres" e "homens com homens" de forma geral, baseando sua crítica na violação da ordem criacional, e não nas circunstâncias da relação.
Outro argumento é a tentativa de relativizar a autoridade de Paulo, sugerindo que ele era apenas um homem de seu tempo, limitado pelos preconceitos culturais de dois mil anos atrás. Como visto anteriormente, este argumento se desfaz quando analisamos a cultura da época. O mundo greco-romano era, em grande parte, permissivo. A postura de Paulo não era um reflexo da cultura; era uma confrontação direta a ela, fundamentada na lei moral de Deus.
Além disso, o movimento ativista contemporâneo procura rotular a simples exposição deste texto bíblico como "discurso de ódio" ou "homofobia", visando criminalizar a opinião que discorda de sua agenda. O objetivo é silenciar a pregação bíblica, restringindo-a, na melhor das hipóteses, aos limites internos do templo. Contudo, a liberdade de expressão e a liberdade religiosa asseguram o direito de proclamar o que as Escrituras ensinam, mesmo que isso confronte os padrões da sociedade atual. A acusação de "ódio" é frequentemente usada para invalidar a posição bíblica, que, embora firme contra o pecado, é chamada a amar o pecador.
4. A Raiz do Pecado e a Punição Merecida
O Apóstolo Paulo não se limita a descrever a prática homossexual como "contrária à natureza"; ele a define teologicamente usando termos fortes que apontam para sua origem e consequência. Ele a chama de "paixões infames" (v. 26), "torpeza" (v. 27) e "erro" (v. 27).
A raiz desse erro, segundo o argumento de Paulo, origina-se no coração humano — suas "concupiscências" (v. 24) e "paixões" (v. 26). O texto sugere que, embora fatores externos (como educação, cultura, abusos ou disfunções familiares) possam influenciar o comportamento humano, a origem fundamental da prática é a corrupção do coração que, uma vez liberado por Deus, segue seus próprios desejos desordenados.
Paulo conclui o versículo 27 com uma afirmação sóbria:
...e recebendo em si mesmos a merecida punição do seu erro. (Romanos 1:27b, ARA)
Esta é uma passagem de interpretação complexa. O apóstolo fala de uma "punição" (ou retribuição) que é "merecida" e, crucialmente, "recebida em si mesmos". Isso não se refere primariamente a um castigo externo (como uma doença específica ou um juízo legal), mas a uma consequência intrínseca e espiritual que se desenrola dentro do próprio indivíduo.
A punição é a própria degradação moral e espiritual. Ao inverter a ordem natural estabelecida pelo Criador, a pessoa experimenta, como consequência inevitável, uma forma de desonra ao próprio corpo e uma desordem interna. É o resultado automático de se afastar do propósito divino para o qual o corpo foi criado. Em vez de glorificar a Deus com o corpo (como Paulo exorta em 1 Coríntios 6:20), a inversão da ordem natural resulta nessa "merecida punição" — a própria experiência daquela desordem.
5. A Posição da Igreja: Verdade, Arrependimento e Graça
Diante de um tema tão sensível, a Igreja é chamada a manter um equilíbrio teológico crucial: sustentar a verdade bíblica sem renunciar à compaixão e à graça do Evangelho. A resposta cristã deve evitar dois extremos: o legalismo que condena sem esperança e o liberalismo que tolera o pecado em nome de uma falsa aceitação.
É fundamental notar que, embora Paulo seja claro em Romanos 1, ele não trata a prática homossexual como um pecado "pior" ou imperdoável. Imediatamente após a passagem em questão, a partir do versículo 28, Paulo lista uma longa série de outros pecados que também são resultado do abandono de Deus, como injustiça, avareza, maldade, inveja, homicídio, soberba e desobediência aos pais (Romanos 1:29-31).
A igreja que aponta para Romanos 1:26-27 com rigor, mas ignora os pecados de adultério, fornicação, prostituição, cobiça ou soberba em seu meio, age com hipocrisia. A Bíblia trata toda prática sexual fora do casamento monogâmico entre um homem e uma mulher com o mesmo rigor moral.
A resposta pastoral correta inclui:
- Distinguir Tentação de Prática: Há uma diferença vital entre sentir uma atração (ser tentado) e consentir com o pecado (praticá-lo). Ser tentado, seja por atração pelo mesmo sexo ou por qualquer outro desejo ilícito, não é, em si, o ato pecaminoso. O pecado reside em concordar com a tentação, fantasiar e agir com base nela.
- Repudiar a Violência e o Ódio: A homofobia — o ódio, a zombaria ou a violência contra uma pessoa por sua orientação sexual — é um pecado e deve ser firmemente repudiada pela Igreja. O chamado cristão é amar o próximo, o que inclui tratar todas as pessoas com dignidade, mesmo ao discordar de suas práticas.
- Oferecer Esperança e Transformação: A mensagem central do Evangelho não é de condenação final, mas de libertação. A Bíblia não vê ninguém como "sem perdão". Ao escrever aos Coríntios, Paulo lista práticas semelhantes, mas oferece uma poderosa declaração de esperança:
Não sabeis que os injustos não hão de herdar o Reino de Deus? Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores hão de herdar o Reino de Deus. E é o que alguns têm sido; mas haveis sido lavados, mas haveis sido santificados, mas haveis sido justificados em nome do Senhor Jesus e pelo Espírito do nosso Deus. (1 Coríntios 6:9-11, ARA)
A palavra-chave é "têm sido". O Evangelho oferece perdão para o passado e poder para a mudança no presente. A mensagem para quem está envolvido na prática homossexual é a mesma mensagem para o adúltero, o mentiroso ou o avarento: arrependimento, fé em Jesus Cristo para perdão e o poder do Espírito Santo para viver uma nova vida em conformidade com a vontade de Deus.
Augustus Nicodemus. 07. Homossexualidade: Uma perspectiva bíblica (Rm 1.26-27). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-jdi0WqRiIs&list=PLQ__KBt7xtI-XkAaKZmLolb4VlGsMDex1&index=6.