1. Introdução: O Prólogo de João
O Evangelho de João inicia-se de uma maneira distinta e majestosa. Diferentemente dos outros evangelhos sinóticos, que começam com genealogias ou narrativas do nascimento de Jesus, João abre com um prólogo teológico profundo e poético, contido nos versículos de João 1:1-14. Esta passagem não é apenas uma introdução, mas a chave hermenêutica para toda a obra, estabelecendo os temas centrais que serão desenvolvidos ao longo do livro.
Conhecido como o "Prólogo do Verbo", este trecho apresenta Jesus Cristo não a partir de sua biografia terrena, mas de sua identidade eterna e divina. Conceitos fundamentais como a preexistência do Verbo (a Palavra, ou Logos em grego), sua divindade, seu papel na criação do universo, e sua vinda ao mundo como a encarnação da "graça e da verdade" são introduzidos de forma concisa e poderosa.
A análise desses versículos é crucial, pois eles funcionam como uma lente através da qual o leitor é convidado a interpretar todos os sinais, discursos e eventos que se seguem. A passagem culmina em uma das declarações mais importantes da fé cristã, no versículo 14, que celebra a encarnação divina. Portanto, mergulhar neste prólogo é essencial para desvendar a resposta que o próprio evangelista busca oferecer à pergunta fundamental: "Quem é Jesus?".
2. A Natureza Eterna e Divina do Verbo (João 1:1-5)
O prólogo do Evangelho de João mergulha diretamente em uma das mais profundas declarações teológicas da Bíblia, estabelecendo a identidade de Jesus Cristo antes mesmo de mencionar seu nome. A passagem de João 1:1-5 desdobra a natureza do "Verbo" (Logos, em grego), um termo que representa a Palavra, a razão e a expressão máxima de Deus.
A primeira afirmação, “No princípio era o Verbo” (João 1:1a), estabelece a preexistência de Cristo. A expressão "no princípio" remete ao início de Gênesis, mas vai além, indicando que o Verbo não foi criado; Ele já existia antes da própria criação do tempo e do espaço, apontando para sua natureza eterna.
Em seguida, o texto afirma que “o Verbo estava com Deus” (João 1:1b). Esta frase é crucial, pois revela uma distinção de Pessoas dentro da Divindade. O Verbo não é uma força impessoal, mas um Ser que mantém um relacionamento íntimo e contínuo com Deus Pai. Ao mesmo tempo que são distintos, coexistem em perfeita unidade.
A terceira cláusula do versículo é a mais direta afirmação da divindade de Cristo: “e o Verbo era Deus” (João 1:1c). Após diferenciar o Verbo do Pai, o evangelista imediatamente reafirma sua identidade de natureza. Ele não era um deus, mas possuía a mesma essência e substância divina. O versículo 2 reforça essa ideia, reiterando: “Ele estava no princípio com Deus”.
O papel do Verbo como agente da criação é explicitado em João 1:3: “Todas as coisas foram feitas por ele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez.” Esta declaração universal atribui a Cristo a autoria de todo o cosmos. Nada que existe, seja visível ou invisível, veio a ser sem a sua intervenção direta, o que sublinha sua soberania e poder criador.
Finalmente, a passagem introduz duas metáforas centrais: vida e luz. “A vida estava nele e a vida era a luz dos homens” (João 1:4). O Verbo não é apenas um portador de vida, mas a própria fonte de toda a vida, tanto biológica quanto espiritual. Essa vida se manifesta como "luz", um símbolo de revelação, verdade e salvação para uma humanidade imersa na escuridão do pecado e da ignorância. Essa luz, por sua natureza divina, é invencível, como conclui o versículo 5: “A luz resplandece nas trevas, e as trevas não prevaleceram contra ela.” Este versículo estabelece um tom de conflito e vitória, prometendo que a revelação divina em Cristo jamais será superada pelas forças da escuridão.
3. O Testemunho de João Batista: A Voz que Anuncia a Luz (João 1:6-9)
Após estabelecer a identidade cósmica e eterna do Verbo, o Evangelho de João introduz uma figura histórica fundamental para a narrativa: João Batista. A passagem de João 1:6-9 funciona como um parêntese estratégico, apresentando o precursor cuja missão era preparar o caminho para a manifestação da Luz no mundo.
O texto inicia destacando a origem divina de sua missão: “Houve um homem enviado por Deus, e o nome dele era João” (João 1:6). Essa introdução solene o posiciona não como uma figura acidental, mas como um mensageiro com um propósito divinamente ordenado. Sua função é claramente definida no versículo seguinte: “Este veio como testemunha para testificar a respeito da luz, para que todos viessem a crer por meio dele” (João 1:7). O papel de João Batista, portanto, não era atrair seguidores para si mesmo, mas ser uma voz, um dedo apontado para a verdadeira fonte de salvação.
Para evitar qualquer ambiguidade, o evangelista faz uma distinção crucial e enfática no versículo 8: “Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz”. Essa negativa deliberada serve para elevar a singularidade de Cristo. Enquanto João Batista era uma lâmpada que ardia e alumiava, ele era apenas um reflexo temporário, destinado a anunciar a chegada da fonte permanente e original de toda iluminação espiritual.
O foco, então, retorna ao Verbo, agora descrito como “a verdadeira luz, que, vinda ao mundo, ilumina toda a humanidade” (João 1:9). A luz mencionada aqui é autêntica e universal. Sua vinda ao mundo não se restringe a um povo ou a uma nação, mas tem o propósito de oferecer revelação e vida a cada ser humano. Assim, João Batista cumpre seu papel como a primeira e mais importante testemunha humana, preparando o cenário para a recepção daquele que é a própria Luz.
4. A Vinda do Verbo ao Mundo: Rejeição e Adoção Divina (João 1:10-13)
Após a introdução do testemunho de João Batista, o prólogo retoma o tema da vinda do Verbo ao mundo, explorando a trágica ironia de sua recepção. A passagem de João 1:10-13 descreve um profundo paradoxo: o Criador entra em sua própria criação, mas não é reconhecido por aqueles que Dele dependem para existir.
O versículo 10 estabelece o cenário cósmico dessa rejeição: “O Verbo estava no mundo, o mundo foi feito por meio dele, mas o mundo não o conheceu.” A expressão "o mundo" aqui se refere ao sistema humano organizado, marcado pela hostilidade e indiferença a Deus. É um contraste chocante que o agente da criação, ao visitar o que fez, encontre ignorância e alienação.
A rejeição se torna ainda mais específica e dolorosa no versículo 11: “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam.” A expressão "o que era seu" pode se referir ao mundo em geral, mas no contexto do Evangelho de João, aponta de forma mais direta para o povo de Israel, a nação escolhida por Deus para ser portadora de Sua revelação. A recusa veio justamente daqueles que, por sua herança e história, deveriam ter sido os primeiros a reconhecê-lo.
Contudo, em meio a essa rejeição, surge uma promessa extraordinária. O versículo 12 apresenta a contrapartida da graça divina: “Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome.” A recepção do Verbo, que se traduz em crer em seu nome — ou seja, em sua identidade e autoridade —, concede um novo status espiritual. Não se trata de uma simples mudança de título, mas da concessão de um "poder" ou "autoridade" (exousia, em grego) para se tornar parte da família de Deus.
O versículo 13 esclarece a natureza desse novo nascimento, diferenciando-o de qualquer origem terrena: “os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.” A filiação divina não é resultado de linhagem sanguínea, desejo humano ou esforço pessoal. É uma obra soberana e sobrenatural, iniciada exclusivamente por Deus. Assim, o prólogo estabelece que a verdadeira identidade espiritual não é herdada, mas recebida pela fé no Verbo que veio ao mundo.
5. A Encarnação: "E o Verbo se Fez Carne" (João 1:14)
O versículo 14 do primeiro capítulo de João representa o clímax do prólogo e uma das mais profundas afirmações da fé cristã: a encarnação. É aqui que o eterno e o temporal, o divino e o humano, se encontram de forma definitiva. A frase “E o Verbo se fez carne” é a declaração central. O Logos eterno e divino, que estava com Deus e era Deus, assume a natureza humana. O termo "carne" (sarx, em grego) é intencionalmente usado para denotar a totalidade da condição humana, com sua fragilidade, vulnerabilidade e mortalidade. Ele não apenas pareceu humano, mas se tornou verdadeiramente um de nós, sem, contudo, abandonar sua divindade.
A expressão “e habitou entre nós” carrega um peso teológico imenso. O verbo grego original, skenoo, significa literalmente "montou sua tenda" ou "tabernaculou". Esta é uma alusão direta ao Tabernáculo do Antigo Testamento, a tenda móvel onde a presença gloriosa de Deus (a Shekinah) habitava no meio do povo de Israel durante sua peregrinação no deserto. Com essa escolha de palavras, João afirma que Jesus é o novo e definitivo Tabernáculo, o local onde a presença de Deus se manifesta de forma plena e acessível entre a humanidade.
A seguir, João, como testemunha ocular, declara: “e vimos a sua glória”. A glória que antes era velada no Santo dos Santos agora se torna visível na pessoa de Jesus. Essa glória foi manifestada em seus milagres, seus ensinamentos, sua transfiguração e, de forma suprema, em sua morte e ressurreição.
Essa glória é descrita como “glória como do unigênito do Pai”. O termo "unigênito" (monogenes) não se refere apenas a ser o único filho, mas aponta para sua natureza única e incomparável. A glória de Jesus é singular, pois Ele compartilha uma relação exclusiva e eterna com o Pai, sendo a expressão exata do seu ser.
Por fim, o caráter dessa glória é revelado: “cheio de graça e de verdade”. Graça (charis) representa o favor imerecido de Deus, e Verdade (aletheia) significa a fidelidade, a realidade e a revelação final de Deus. Jesus é a personificação perfeita desses atributos divinos, oferecendo à humanidade o dom da salvação e a revelação completa do Pai em uma forma que podemos ver e compreender.
A Casa da Rocha. #03 - O Verbo se fez Carne - Zé Bruno - Quem é Jesus. Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/live/M5HGJ6sdhic?si=_nqoiMhdSQQ5fpgp. Acesso em: 10/08/2025.