1. A Espiritualidade como "Colcha de Retalhos": De Onde Vem a Sua Fé em Jesus?
A pergunta "Quem é Jesus?" pode parecer simples à primeira vista, mas uma reflexão mais profunda revela sua complexidade. A imagem de Jesus que muitas pessoas constroem hoje raramente provém de uma única fonte. Em vez disso, ela se assemelha a uma "colcha de retalhos", tecida com fragmentos de diversas origens: o podcast inspirador, o corte de uma pregação que viralizou nas redes sociais, o testemunho emocionante encontrado online, a música de adoração favorita e, claro, as opiniões e "achismos" de amigos e influenciadores.
Imagine a formação da sua espiritualidade como um diagrama de pizza. Que tamanho teria a fatia correspondente ao estudo diligente e responsável das Escrituras? E qual seria o tamanho das fatias representadas por experiências pessoais, sentimentos, pregações de diferentes linhas teológicas e conteúdos consumidos na internet? Uma análise honesta poderia revelar um dado surpreendente: para muitos, mais de 90% de suas crenças não partem de uma observação direta e organizada dos Evangelhos, mas sim de um mosaico de influências externas.
O problema não reside na possibilidade de ser edificado por uma canção ou um testemunho. Essas experiências podem, de fato, agregar valor à jornada de fé. A questão central é a falta de um fundamento sólido que permita discernir a veracidade e a coerência de tudo o que se ouve. Sem uma base firme nas Escrituras, a espiritualidade se torna vulnerável, suscetível a ventos de doutrinas e interpretações conflitantes, muitas vezes consumidas sem que se perceba a divergência teológica entre elas.
Portanto, a estaca que firma o indivíduo e o capacita a avaliar se o que ele ouve é, de fato, o evangelho, é a sua dedicação pessoal ao estudo da Palavra. É essa responsabilidade que transforma uma fé fragmentada em uma convicção bem fundamentada, permitindo uma aproximação mais fiel à pessoa de Jesus como revelada nos textos sagrados.
2. A Proposta dos Evangelhos: O Testemunho Escrito e o Propósito de João
Os quatro Evangelhos do Novo Testamento, embora narrem a mesma história central, não são biografias idênticas. Cada autor escreveu com uma perspectiva e um propósito distintos, oferecendo um retrato multifacetado de Jesus. Compreender essas nuances é fundamental para aprofundar o conhecimento sobre quem ele é.
- Mateus, um publicano, dirige seu evangelho a um público judeu, com o claro objetivo de demonstrar que Jesus é o Messias prometido. Para isso, ele utiliza a genealogia e cita inúmeras profecias do Antigo Testamento, conectando a vida de Cristo às esperanças de Israel.
- Marcos, que caminhou próximo ao apóstolo Pedro, apresenta um evangelho dinâmico, considerado por muitos o "eco da voz de Pedro". Seu relato é rápido, focado em mostrar Jesus em ação, manifestando os sinais do Reino de Deus de forma poderosa e humana.
- Lucas, por sua vez, escreve a um amigo grego chamado Teófilo, com a intenção de oferecer um relato ordenado sobre o Rei e o seu Reino. Sua obra, que inclui também o livro de Atos, busca apresentar a história de Jesus de forma clara para um público não-judeu.
- João, cujo evangelho foi o último a ser escrito, destaca-se por sua "alta cristologia". Ele não se detém tanto na cronologia dos eventos, mas mergulha profundamente na identidade divina de Cristo, dissecando a revelação de Deus na pessoa do Filho.
Diferentemente de muitos outros livros bíblicos, João declara abertamente o seu objetivo, oferecendo uma chave de leitura para tudo o que foi escrito. Conforme João 20:30-31:
"Na verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro. Estes, porém, foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome."
Esta declaração é a linha mestra que costura toda a sua narrativa. O propósito é duplo: primeiro, levar o leitor a crer que Jesus é o Cristo, o enviado de Deus; segundo, e como consequência direta, que essa crença resulte em "vida em seu nome". Não se trata de um conhecimento meramente intelectual ou matemático, mas de um entendimento que transforma a própria existência, fazendo com que a vida de Cristo se torne a vida do crente.
3. Vimos, Ouvimos e Tocamos: A Experiência Palpável com o Verbo da Vida
Para o apóstolo João, o evangelho não era uma filosofia abstrata ou um conjunto de doutrinas distantes. Era uma realidade vivida, sentida e profundamente pessoal. Em sua primeira epístola, ele descreve essa experiência com uma clareza sensorial impressionante, estabelecendo a base histórica e tangível da fé cristã. A análise de 1 João 1:1-4 é crucial para entender essa dimensão:
"O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos próprios olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam, a respeito do Verbo da vida — e a vida se manifestou, e nós a vimos, e dela damos testemunho, e vo-la anunciamos, a vida eterna, a qual estava com o Pai e nos foi manifestada —, o que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também tenhais comunhão conosco; e a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo. Estas coisas vos escrevemos, para que a vossa alegria seja completa."
A ênfase de João é inconfundível. Ele não fala de uma ideia, mas de uma pessoa. O "Verbo da vida" não foi apenas compreendido intelectualmente; ele foi ouvido, visto, contemplado e até mesmo apalpado. Os apóstolos não creram em Jesus porque um profeta lhes trouxe uma palavra isolada ou porque tiveram uma experiência mística individual, como Moisés diante da sarça ardente. A revelação foi coletiva e pública. Muitas testemunhas não apenas viram, mas conviveram, comeram, caminharam e abraçaram aquele em quem criam.
Isso estabelece uma distinção fundamental para a fé. Jesus não foi:
- Uma teoria: Ele não era um conceito a ser debatido, mas uma pessoa que viveu entre os homens.
- Uma revelação exclusiva: A mensagem não foi confiada a um único indivíduo que a repassou aos outros; foi uma experiência compartilhada por uma comunidade.
- Uma emoção passageira: A fé dos discípulos não se baseava em um sentimento produzido durante uma noite de adoração.
Este último ponto é especialmente relevante. Muitas vezes, a experiência de fé contemporânea é medida pela intensidade das sensações. Busca-se "sentir" a presença de Deus, e a ausência dessa emoção pode ser interpretada como ausência de fé ou de Deus. João, no entanto, apresenta um evangelho para as 24 horas do dia, para o "chão da vida". É a presença de Jesus quando um carro bate, quando um ente querido parte ou quando as finanças apertam. Nesses momentos, a fé não é sustentada por uma emoção produzida, mas pela consciência de uma nova vida em um Deus que se fez palpável e caminhou entre nós.
4. A Vida Manifestada: Jesus como a Revelação Visível do Deus InvisívelPublicidade
A oração "Senhor, abençoa a minha vida" é comum, mas ela nos convida a uma reflexão: a que vida nos referimos? Frequentemente, tratamos nossa existência como um armário com diversas gavetas — a vida profissional, a sentimental, a financeira — e pedimos a Deus que abençoe cada compartimento separadamente. No entanto, o evangelho propõe algo radicalmente diferente: não a bênção de nossas múltiplas áreas, mas a submissão de nossa única vida à Vida que se manifestou em Cristo.
A "vida" que o evangelho oferece não se trata de garantir que teremos mais ou menos dinheiro, sucesso ou um relacionamento específico. Trata-se de forjar um novo ser humano, cujo caráter é moldado pela presença de Deus, com ou sem essas coisas. A questão não é o que teremos, mas quem seremos. Foi para demonstrar esse "quem" que a Vida se tornou palpável.
A própria palavra usada por João para descrever este evento — "manifestou" (phaneroō) — carrega em si a ideia de iluminação. No grego, este verbo tem sua raiz em phos, que significa luz. Portanto, quando o texto diz que "a vida se manifestou" (1 João 1:2), o significado implícito é que ela foi "trazida à luz", "feita brilhar". É como se Deus estivesse descortinando a Sua própria natureza, antes invisível, e a revelando plenamente na pessoa de Cristo, de forma que todos pudessem ver.
O apóstolo João articula essa verdade de forma magistral. Em João 1:18, ele afirma: "Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou". O verbo grego para "revelou" é exegesato, de onde vem a palavra "exegese", que significa extrair o sentido, interpretar. Jesus, portanto, é a interpretação viva do Pai diante dos homens. Cada ato, palavra e pensamento de Cristo era a manifestação visível do Deus invisível.
Essa ideia é reforçada em Colossenses 1:13-15:
"Pois ele nos resgatou do domínio das trevas e nos transportou para o Reino do seu Filho amado, em quem temos a redenção, a remissão dos pecados. Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação."
Se Cristo é a expressão exata de Deus, então a vida que Ele viveu se torna o nosso modelo. Muitas das neuroses e preocupações que carregamos não caberiam em sua mente, pois Ele vivia em completa submissão e confiança no Pai. Sua prioridade era clara, como Ele mesmo disse em João 4:34: "A minha comida consiste em fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra".
Essa entrega total é o cerne da nova vida. Implica um processo de morte para o eu, como ilustrado na metáfora do grão de trigo em João 12, que só gera fruto se cair na terra e morrer. O desafio é abandonar nossos planos, paixões e conceitos para perguntar: "O que o Senhor quer que eu viva?". É a troca da nossa vida pela d'Ele.
5. De Marketing a Mártir: O Verdadeiro Significado de Ser Testemunha de Cristo
No contexto cristão, a palavra "testemunho" é frequentemente associada ao ato de falar, pregar ou compartilhar verbalmente a fé. No entanto, sua raiz etimológica revela um significado muito mais profundo e exigente. O termo grego para testemunha é martys (μάρτυς), de onde deriva a palavra "mártir". Ser uma testemunha de Cristo, em sua essência, não é sobre ter um bom marketing, mas sobre ser um mártir — alguém cuja vida é um sacrifício que encarna a mensagem pregada.
O texto de Hebreus 1:1-4 destaca que, enquanto no passado Deus falou de muitas maneiras pelos profetas, "nestes últimos dias, nos falou pelo Filho". Jesus não foi apenas uma profecia ou uma emoção; ele foi uma pessoa cuja vida inteira era a mensagem. Ele era Deus de forma visível, audível e palpável. Nós, como suas testemunhas, somos chamados a seguir esse mesmo padrão: ser a encarnação da fé que professamos.
Aqui reside um ponto polêmico e desafiador da vida cristã. É possível construir um grande canal de comunicação, ter uma retórica impecável e se preocupar com o marketing da fé, mas falhar no aspecto crucial do martírio. O testemunho mais poderoso não é o "blá blá blá" de promessas e declarações, mas aquele que pode ser visto, ouvido e tocado nas ações cotidianas.
Considere a diferença:
- Falar sobre amor é marketing. Amar quem nos ofendeu é martírio.
- Pregar sobre graça é marketing. Perdoar uma traição é martírio.
- Discutir sobre a soberania de Deus é marketing. Confiar Nele em meio à dor da perda, abrindo mão de um plano pessoal para consolar um amigo, é martírio.
As pessoas ao nosso redor podem ser impactadas por nossas palavras, mas serão transformadas por nossa vida. Quando o que cremos se torna carne em nós — quando a graça que pregamos é a graça que praticamos —, o evangelho deixa de ser uma teoria religiosa e se torna uma realidade palpável. A preocupação deixa de ser "qual é a igreja certa?" ou "qual é a doutrina correta?", como se a fé fosse um clube ou um debate acadêmico. A verdadeira questão passa a ser: "Eu sou uma pessoa certa? A verdade que eu defendo é a verdade que eu vivo?".
O grande desafio para o cristão não é vencer debates teológicos, mas morrer para suas próprias paixões, pecados e vontades. É ser uma "escritura palpável", permitindo que as pessoas ao redor possam ler o evangelho em nossas atitudes e dizer: "Agora eu entendo o que é Deus, não porque alguém me falou, mas porque eu vi, ouvi e senti através da vida de alguém".
A Casa da Rocha. #01 - Testemunhas de um evangelho palpável - Zé Bruno - Quem é Jesus. Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bsAY9P4Kyxw. Acesso em: 06/08/2025.