1. Introdução: O Contexto da Pregação em Nazaré
O Evangelho de Lucas, escrito ao seu amigo Teófilo, detalha a vida de Cristo para sanar dúvidas sobre os fatos ocorridos, traçando um paralelo entre o cenário da época de Jesus e as inquietações contemporâneas. O capítulo 4, versículos 14 a 30, nos situa em um momento crucial: após ser batizado, cheio do Espírito Santo, e vencer a tentação no deserto, Jesus retorna à Galileia "no poder do Espírito".
Ele inicia seu ministério percorrendo a região, e sua fama começa a crescer. Seu costume era ensinar nas sinagogas — locais que se tornaram centrais para a fé judaica, especialmente após o exílio babilônico, quando o Templo foi destruído. As sinagogas funcionavam não apenas aos sábados, mas também em dias de julgamento e comércio (segundas e quintas), e eram o ponto de encontro da comunidade para a leitura da Lei (o Pentateuco), dos Salmos e dos Profetas.
É nesse ambiente que Jesus retorna à sua própria cidade, Nazaré, onde havia sido criado. Como era seu costume, ele entra na sinagoga no sábado, um lugar onde certamente foi visto crescer e era conhecido por todos como "o filho de José".
2. A Leitura de Isaías: O Cumprimento da Profecia
Seguindo o costume da sinagoga, onde um membro adulto poderia levantar-se para ler as escrituras, Jesus se levanta. O assistente lhe entrega o rolo do profeta Isaías. Jesus o abre e encontra o lugar que hoje conhecemos como Isaías 61, versículos 1 e 2, e começa a ler:
"O espírito do senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me a proclamar libertação aos cativos e restauração de vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos e proclamar o ano aceitável do senhor."
Após a leitura, Jesus fecha o rolo, o devolve ao assistente e se senta. A expectativa no ambiente é palpável; todos na sinagoga fixam os olhos nele, aguardando a explicação do texto, como era comum.
Então, Jesus faz uma declaração que redefine o momento, aplicando a profecia diretamente a si mesmo: "Hoje se cumpriu a escritura que vocês acabam de ouvir."
Com essa frase, Jesus não se posiciona apenas como um intérprete da lei ou mais um profeta. Ele afirma que a profecia de Isaías não se referia ao próprio profeta, mas apontava para Ele. O "ano aceitável do Senhor" não era uma esperança futura distante; havia chegado naquele exato momento, em sua pessoa. Era Ele quem o Espírito havia ungido para evangelizar os pobres, libertar os cativos e oprimidos, e restaurar os cegos.
3. "Médico, Cura-te a Ti Mesmo": A Rejeição na Própria Pátria
A reação inicial às palavras de Jesus foi mista. O texto de Lucas relata que "todos davam testemunho dele e se maravilhavam das palavras cheias de graça que saíam dos seus lábios". Havia um reconhecimento da sabedoria com que ele falava. Contudo, essa admiração rapidamente se transforma em ceticismo, resumido na pergunta: "Não é este o filho de José?"
Para o povo de Nazaré, Jesus era apenas o carpinteiro local, o menino que viram crescer. Eles não conseguiam conciliar sua origem comum com a autoridade messiânica que ele reivindicava.
Jesus, percebendo a tensão e a incredulidade no coração deles, antecipa seus pensamentos. Ele sabe que eles desejam provas tangíveis, os mesmos milagres que sua fama dizia ter realizado em Cafarnaum. Por isso, Ele mesmo cita o provérbio: "Sem dúvida vocês citarão para mim o provérbio: 'Médico, cure-se a si mesmo'. E dirão: 'Tudo que ouvimos que você fez em Cafarnaum, faça-o também aqui na sua terra'."
Ele então expõe a raiz do problema com uma afirmação dura: "De fato, afirmo a vocês que nenhum profeta é bem recebido na sua própria terra."
A palavra grega utilizada para "terra" aqui é patris, que significa mais do que a localização geográfica; refere-se à pátria, ao povo, à etnia, ao círculo familiar e social. Jesus não estava sendo rejeitado apenas em sua cidade, mas entre seu próprio povo, que o via como "o filho do Zé e da Maria" e não como o Ungido de Deus. Eles esperavam um Messias que se encaixasse em suas expectativas, talvez alguém vindo de uma casta sacerdotal, de uma escola de escribas renomada ou um líder político-militar, e não o filho de um simples carpinteiro.
4. A Graça Transcende Fronteiras: Exemplos de Elias e Eliseu
Para confrontar o nacionalismo e o exclusivismo de seus ouvintes, Jesus utiliza dois exemplos contundentes do Antigo Testamento, citando profetas que eles próprios veneravam: Elias e Eliseu.
Jesus lembra que, nos dias do profeta Elias, quando uma grande fome assolou a terra por três anos e seis meses, "havia muitas viúvas em Israel". No entanto, Deus não enviou Elias a nenhuma delas. Em vez disso, Ele o enviou a uma mulher estrangeira: "a não ser a uma viúva de Sarepta de Sidom" (Lucas 4:26). Sidom era território gentio, fora dos limites considerados "puros" por Israel.
Da mesma forma, Ele menciona o profeta Eliseu. Naquela época, "havia também muitos leprosos em Israel", mas nenhum deles foi purificado. A graça da cura foi estendida a um inimigo militar de Israel: "a não ser Naamã, o siro" (Lucas 4:27). Naamã era o comandante do exército da Síria, uma nação frequentemente em conflito com Israel.
Com essas referências, Jesus estava desmantelando a interpretação exclusivista que eles tinham das Escrituras. Ele estava demonstrando que, desde o princípio, a graça de Deus não é patriótica, não é étnica e não se limita a fronteiras geográficas ou a um "povo escolhido" da forma como eles entendiam.
A mensagem era clara: se eles, em Nazaré, o rejeitassem baseados em sua origem (sua patris), a graça de Deus simplesmente seguiria seu curso, fluindo para além de suas fronteiras, alcançando aqueles que a religião e o nacionalismo desprezavam — os "siros" e "sidônios" da época. Essa declaração foi um ataque direto ao orgulho religioso e patriótico da sinagoga.
5. Os "Movimentos Patrióticos" da Época vs. O Reino de Deus
A rejeição de Jesus em Nazaré não foi um incidente isolado; ela refletia a tensão de um verdadeiro "caldeirão" político e religioso da época. O povo judeu vivia sob o domínio romano e ansiava pelo cumprimento das profecias messiânicas, mas diferentes facções tinham visões radicalmente distintas sobre como isso deveria acontecer:
- Os Essênios: Vendo a corrupção da religião e a interferência de Roma, este grupo se isolou no deserto, vivendo como ermitãos para tentar preservar sua espiritualidade longe da influência externa.
- Os Zelotes e Sicários: Eram grupos revolucionários que acreditavam na restauração do reino de Israel pela "raça e pela força". Eles defendiam a revolta armada contra Roma para cumprir a profecia na "bala".
- Os Grupos Religiosos (Saduceus, Fariseus, Escribas): Embora também desejassem o reino, buscavam caminhos políticos. Eles se acomodavam e faziam alianças com Roma para manter seu status quo religioso e poder, esperando que, de alguma forma, o reino pudesse surgir dessa manobra política.
Jesus, no entanto, não se alinhou com nenhuma dessas "pátrias" ou movimentos.
Seu discurso não se alinhava com o isolamento dos essênios, nem com a violência revolucionária dos zelotes, nem com a acomodação política dos saduceus e fariseus. Todos esses eram movimentos humanos — baseados na força física, na ideologia ou na religião ligada ao poder temporal — tentando forçar o cumprimento de uma promessa divina por meios terrenos.
Quando Jesus leu Isaías e disse "hoje se cumpriu", Ele estava apresentando um caminho totalmente diferente. Ele declarou ser o Messias, mas um Messias cujo "reino não é dessa terra". Ele não fazia parte da pátria dos essênios, da pátria dos zelotes ou da pátria dos fariseus. Ele estava inaugurando um Reino que não dependia de força militar, de política partidária ou de pureza étnica, mas sim da graça.
6. O Reino Sem Limites: Uma Mensagem para Hoje
A reação imediata ao discurso de Jesus em Nazaré foi violenta. O texto de Lucas diz que "todos na sinagoga, ouvindo essas coisas, se encheram de ira". A mensagem de que a graça de Deus não era exclusiva deles, mas se estendia a estrangeiros e até inimigos, foi tão ofensiva que eles o expulsaram da cidade e tentaram atirá-lo de um penhasco.
Essa tensão revela o cerne da mensagem de Cristo: o Reino de Deus não tem fronteiras, nacionalismo ou etnia.
A religião, quando interpretada de forma patriótica, tende a criar cercas, definindo quem está "dentro" e quem está "fora". O povo de Nazaré estava olhando para Jesus através de limites territoriais, étnicos e de sobrenome. Eles queriam um Messias para "eles".
Jesus, ao citar Elias e Eliseu, estava afirmando que o Reino de Deus não tem limites socioeconômicos, políticos ou geográficos. A graça divina, demonstrada na cruz, é uma "injustiça" para a lógica humana do mérito, pois ela alcança o ladrão ao lado de Cristo da mesma forma que alcança o mais devoto dos religiosos.
Esta mensagem ecoa fortemente hoje. Quando o Antigo Testamento é lido de forma sectária, buscando justificar o exclusivismo territorial ou étnico, ignora-se que Jesus "mete o pé nisso". Ele próprio expandiu a genealogia de Cristo, que inclui gentios como Rute (moabita) e Raabe (de Jericó).
O Evangelho que chegou até nós, especialmente através do ministério de Paulo, o apóstolo aos gentios, só foi possível porque ele compreendeu que a mensagem não era nacionalista. Paulo levou o evangelho pela Ásia, Macedônia e Grécia, entendendo que em Cristo "todos somos um", sejam judeus ou gregos.
O Reino de Deus é o lugar onde povos de todas as tribos, línguas e nações são filhos do mesmo Pai, e onde o "próximo" — como ilustrado na parábola do Bom Samaritano, um estrangeiro odiado — é qualquer um que esteja em nosso caminho necessitando de misericórdia.
7. Conclusão: Sinais de uma Religião que se Afastou da Graça
A reação violenta em Nazaré demonstra uma verdade central: a graça pura, como apresentada por Jesus, é inaceitável para um sistema religioso baseado em mérito, nacionalismo e exclusivismo. A religião humana busca criar níveis de acesso, comercializá-los e definir quem merece e quem não merece. A graça, por outro lado, "põe em liberdade", é gratuita e se abre aos desprezados, o que ameaça o status quo da liderança religiosa.
O episódio de Nazaré serve como um alerta. É possível estar profundamente imerso em um sistema religioso, frequentar a sinagoga (ou a igreja), estudar as escrituras e, ainda assim, rejeitar a essência do Evangelho quando ela se apresenta.
Como saber, então, se uma comunidade de fé está operando como a "pátria" que rejeita Cristo ou como o Reino que Ele proclamou? O texto sugere alguns sinais de alerta de um sistema religioso que se afastou da graça:
- Existência de Castas: Quando se criam níveis e hierarquias que separam os "mais ungidos" dos "menos ungidos", estabelecendo um sistema controlador.
- Justificativa para o Ódio: Quando as interpretações das escrituras, especialmente do Antigo Testamento, são usadas para justificar o ódio, a vingança ou a exclusão (como "acabar com os filisteus hoje"), em vez de serem lidas através das lentes da graça que Jesus demonstrou em Nazaré.
- Ausência de Confronto Pessoal: Quando a pregação não confronta o ego, não aponta o pecado individual e não chama ao arrependimento (metanoia), mas apenas reforça a ideia de que "nós estamos certos e eles estão errados".
- Aliança com o Poder ('Roma'): Quando a comunidade de fé se sente confortável demais em aliança com os sistemas de poder do mundo (o "Império"), buscando relevância política em vez de fidelidade ao Rei de um reino que não é deste mundo.
- O Foco Desviado: Quando o foco central da comunidade deixa de ser a graça, o amor ao perdido, o perdão e a misericórdia, e passa a ser o poder, o domínio, a ganância ou a manutenção do próprio feudo.
Jesus foi um profeta sem honra em sua própria pátria porque seu Reino não se encaixava nos limites dela. Ele veio para os pobres de espírito, para os cativos de sistemas humanos (sejam políticos ou religiosos) e para proclamar um tempo aceitável que transcende todas as fronteiras.
A Casa da Rocha - #06 - Reino sem pátria - Zé Bruno - Meu Caro Amigo. https://www.youtube.com/watch?v=OpV3vV4Bkak&list=PLln4KGoeU_UlYAKpYT6dSHyl8oNMkDcO9&index=6