1. A Luta Histórica pela Pureza do Evangelho
Desde seus primórdios, a igreja cristã tem uma mensagem central e distintiva: Deus salva pecadores mediante a fé em Jesus Cristo. Embora a igreja se envolva em diversas atividades — obra social, cuidado aos necessitados e engajamento cultural —, sua identidade fundamental ressoa na proclamação das boas-novas, o evangelho. Esta é a mensagem de que Deus amou o mundo de tal forma que ofereceu Seu Filho unigênito, para que todo aquele que Nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.
Contudo, desde o início, a igreja tem travado uma batalha constante para preservar a pureza dessa mensagem. Já no primeiro século, surgiram as primeiras distorções. Os judaizantes, judeus convertidos ao cristianismo, argumentavam que a fé em Cristo era insuficiente; era necessário também guardar as obras da lei de Moisés. Essa visão foi combatida por ser uma corrupção da mensagem da salvação gratuita. Na mesma época, apareceram os libertinos, que, ao ouvirem sobre a graça abundante de Deus, a interpretavam como uma licença para viver de qualquer maneira, transformando a liberdade em uma desculpa para o pecado.
As ameaças continuaram. No século II, o gnosticismo tentou fundir a fé cristã com a filosofia grega e religiões de mistério, exigindo um combate intelectual e teológico por parte dos líderes da igreja. Séculos mais tarde, com a institucionalização da igreja durante a Idade Média, novas doutrinas se infiltraram, como a adoração e mediação de Maria, a veneração dos santos e o conceito do purgatório. Novamente, a ideia de que a salvação dependia das obras humanas, em conjunto com a fé, obscureceu a simplicidade do evangelho.
Após a Reforma Protestante ter resgatado a mensagem da salvação pela fé, o desafio seguinte foi o liberalismo teológico. Originado na Europa e espalhado pelo mundo, esse movimento questionava a autoridade e a veracidade da Bíblia, tratando-a como uma coleção de mitos. Jesus era reduzido a um grande professor de moralidade, e suas obras sobrenaturais, morte e ressurreição eram negadas.
Hoje, a igreja enfrenta novas versões distorcidas do evangelho. O evangelho da prosperidade, por exemplo, transforma a mensagem de salvação em uma chave para obter sucesso financeiro, saúde e bens materiais. Outras correntes, como a teologia da libertação, recontextualizam a mensagem em termos puramente sociopolíticos. Em todas as gerações, a igreja é chamada a lutar pela fé evangélica, o que torna imperativo retornar continuamente às Escrituras com uma pergunta fundamental: o que é o evangelho em sua forma pura e original?
2. O Contexto da Carta aos Romanos: Uma Apresentação Missionária
Ao iniciar a leitura da carta aos Romanos, um detalhe chama a atenção: a introdução, que compreende os sete primeiros versículos, é notavelmente mais longa e densa do que o padrão encontrado em outras epístolas do apóstolo Paulo. Essa extensão não é acidental; ela revela o propósito estratégico por trás da carta. Diferentemente de muitas outras comunidades, a igreja em Roma não foi fundada por Paulo, e ele não era conhecido pessoalmente pela maioria dos crentes da capital do Império.
A fama de Paulo, no entanto, já havia chegado a Roma, e com ela, provavelmente, uma série de boatos e acusações. Ele sabia que circulavam rumores de que era um mercenário, pregando o evangelho para arrecadar fundos para si mesmo. Outros o acusavam de ser um apóstata do judaísmo, alguém que pregava contra Moisés, contra o templo e contra as gloriosas instituições da antiga aliança. Paulo precisava, portanto, apresentar suas credenciais e a autenticidade de sua mensagem.
Seu objetivo era claro: ganhar o apoio da igreja de Roma para seu ambicioso projeto missionário de levar o evangelho até a Espanha. Olhando para o mapa da época, Roma era um ponto estratégico fundamental no caminho para o extremo ocidental do Império. Ter a igreja romana como uma base de apoio seria crucial para o sucesso dessa empreitada.
Assim, a carta aos Romanos funciona como uma apresentação missionária. Nela, Paulo expõe de forma sistemática e detalhada quem ele é e, principalmente, o conteúdo do evangelho que prega. Ele escreve para assegurar aos crentes romanos que sua mensagem é divina e para antecipar e responder às possíveis objeções e críticas que sabia que enfrentaria, como questões sobre o papel da lei, o destino da nação de Israel e a justificação pela fé. A densa introdução, portanto, não é apenas uma saudação, mas um resumo magistral de toda a carta, estabelecendo a base para o argumento teológico que se seguirá.
3. A Origem do Evangelho: Uma Mensagem de Deus (Romanos 1:1)
Para estabelecer a autoridade de sua mensagem, Paulo começa sua carta com uma afirmação fundamental: o evangelho que ele prega é o "evangelho de Deus". Com essa simples declaração, ele posiciona a origem das boas-novas não em uma filosofia humana ou em sua própria criatividade, mas na vontade soberana do Criador. Para reforçar esse ponto, ele apresenta três credenciais que definem sua identidade e sua missão, todas elas radicalmente centradas em Deus.
Primeiro, ele se descreve como "servo de Jesus Cristo". A palavra grega original é doulos, que significa literalmente "escravo". Em uma cultura como a romana, onde havia milhões de escravos e a liberdade era o bem mais prezado, um cidadão jamais se apresentaria voluntariamente como tal. No entanto, Paulo o faz para indicar sua completa e incondicional submissão a Jesus, a quem ele reconhece como seu Senhor e Mestre absoluto. Sua vida não lhe pertencia mais; ele vivia para obedecer ao seu Senhor.
Segundo, ele afirma ter sido "chamado para ser Apóstolo". A ênfase na palavra "chamado" é crucial. Paulo não se autoproclamou apóstolo nem buscou essa posição por ambição pessoal. Sua nomeação foi uma iniciativa divina, ocorrida de forma dramática na estrada de Damasco. O termo "apóstolo" designava um enviado, um delegado que representava com plena autoridade aquele que o enviou. Assim, Paulo se apresenta como um embaixador oficial de Cristo, com a missão de conduzir os "negócios" do Reino de Deus no mundo.
Terceiro, ele se diz "separado para o evangelho de Deus". Aqui, Paulo faz um jogo de palavras sutil e poderoso. Como ex-fariseu, sua identidade anterior estava ligada à ideia de ser "separado" (perushim, em hebraico) para a pureza da lei de Moisés. Agora, ele revela uma nova separação, realizada pelo próprio Deus: ele foi apartado de sua antiga vida e consagrado a um único propósito — a proclamação do evangelho. O mesmo zelo que antes dedicava à lei, agora era canalizado para a mensagem da graça.
Essas três credenciais, portanto, constroem um argumento irrefutável: Paulo não é um mercenário nem um inventor de doutrinas. Sua submissão, sua autoridade e sua própria identidade foram forjadas por uma intervenção direta de Deus. Consequentemente, a mensagem que ele carrega não é sua, mas pertence ao Deus que o chamou e o enviou.
4. A Raiz do Evangelho: O Cumprimento de uma Promessa Antiga (Romanos 1:2)
Após estabelecer a origem divina do evangelho, Paulo combate outra possível crítica: a de que sua mensagem seria uma invenção recente e desvinculada da história da redenção. Ele demonstra que o evangelho, longe de ser uma novidade, é a concretização de uma promessa que Deus vinha anunciando há séculos, conforme afirma no versículo 2: "o qual foi por Deus outrora prometido por intermédio de seus profetas nas sagradas escrituras".
Essa mensagem estava entrelaçada em toda a narrativa do Antigo Testamento. A promessa começou a ser revelada sutilmente no Jardim do Éden, com a profecia de que a descendência da mulher esmagaria a cabeça da serpente (Gênesis 3:15). Ela ganhou contornos mais claros na aliança com Abraão, quando Deus declarou que, por meio de sua descendência, todas as famílias da terra seriam abençoadas.
A lei entregue a Moisés, com seu complexo sistema de sacrifícios, também apontava para essa promessa. Cada animal sacrificado e cada gota de sangue derramado prefiguravam o perdão definitivo que viria através de um sacrifício perfeito. Os profetas, por sua vez, falaram de forma ainda mais explícita. Isaías, no capítulo 53, descreveu em detalhes o Servo Sofredor, que levaria sobre si os pecados do povo. Ezequiel anunciou uma Nova Aliança, na qual Deus perdoaria completamente as iniquidades, e Joel profetizou um derramamento do Espírito sobre toda a carne.
Portanto, o evangelho que Paulo pregava não era uma ruptura com a fé de Israel, mas seu clímax. O Antigo Testamento registrou a promessa, criando a expectativa; o Novo Testamento anuncia seu cumprimento glorioso. As duas partes das Escrituras são inseparáveis: não podemos compreender plenamente o Novo sem o Velho, nem o Velho sem o Novo. O evangelho é a continuação da história da redenção, a etapa em que Deus cumpre, de forma definitiva, aquilo que Ele havia prometido desde a antiguidade.
5. O Coração do Evangelho: A Pessoa de Jesus Cristo (Romanos 1:3-4)
Com a origem e a raiz do evangelho estabelecidas, Paulo avança para o seu núcleo: a pessoa e a obra de Jesus Cristo. Ele deixa claro que o evangelho não é um sistema de moralidade, uma chave para a prosperidade material ou um conjunto de rituais, mas a boa notícia "com respeito a seu Filho". Jesus é o centro, o conteúdo e a substância da mensagem. Paulo, então, descreve a identidade incomparável de Cristo, destacando sua dupla natureza: Ele é, ao mesmo tempo, perfeitamente humano e plenamente divino.
Primeiramente, Paulo afirma sua humanidade no versículo 3: "o qual segundo a carne veio da descendência de Davi". A expressão "segundo a carne" indica que o Filho de Deus assumiu uma natureza humana genuína, com corpo, ossos e sangue. Ele não era uma aparição ou um fantasma, mas um de nós. Mais especificamente, sua linhagem remonta ao rei Davi, cumprindo as profecias do Antigo Testamento de que o Messias viria da casa real de Israel para se sentar no trono de seu povo para sempre.
Contudo, Jesus era muito mais do que um herdeiro real. Paulo, no versículo 4, revela sua divindade, afirmando que Ele "foi designado Filho de Deus com poder". Isso não significa que Ele se tornou Filho de Deus em algum momento, mas que sua filiação divina foi demonstrada e confirmada publicamente de maneira irrefutável. Paulo apresenta duas evidências para essa designação:
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"Segundo o espírito de santidade": Essa expressão aponta para a natureza intrinsecamente santa de Jesus. Durante toda a sua vida terrena, Ele viveu sem cometer um único pecado, uma proeza impossível para qualquer ser humano comum e que evidenciava sua origem divina.
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"Pela ressurreição dos mortos": Este é o selo final e a demonstração máxima de seu poder. Se Jesus tivesse permanecido na sepultura após sua crucificação, teria sido lembrado apenas como mais um líder revolucionário fracassado, como outros que surgiram em Israel e cujos movimentos desapareceram após suas mortes. No entanto, ao ressurgir dos mortos ao terceiro dia, Ele foi poderosamente confirmado como o Filho de Deus. A ressurreição o distingue de todos os outros e valida todas as suas alegações.
Assim, o evangelho é a notícia sobre essa pessoa única, Jesus Cristo, nosso Senhor. Ele é o verdadeiro homem que cumpre as promessas e o verdadeiro Deus com poder para salvar, entronizado à direita do Pai e detentor de toda autoridade no céu e na terra.
6. O Alcance do Evangelho: Um Chamado à Obediência da Fé para Todos (Romanos 1:5)
Depois de apresentar Jesus Cristo como o Senhor ressurreto e centro do evangelho, Paulo explica o propósito de sua própria missão, que flui diretamente da autoridade de Cristo. A mensagem das boas-novas não foi designada para permanecer restrita a um único povo, mas tem um alcance universal. Paulo afirma ter recebido "graça e apostolado [...] para obediência por fé entre todos os gentios".
A expressão "todos os gentios" revela a dimensão global da comissão apostólica. O termo "gentios" era usado para se referir a todos os povos não-judeus. Com isso, Paulo declara que a promessa de salvação, antes focada na nação de Israel, agora se expande para alcançar todas as nações, tribos e línguas da terra. A boa notícia é para o mundo inteiro, pois não há outro caminho para a salvação.
Mais do que isso, a resposta esperada a essa mensagem universal é a "obediência por fé". Essa frase é fundamental para entender a natureza da verdadeira fé cristã. Para Paulo, a fé não é meramente uma concordância intelectual com fatos ou um sentimento passageiro. A fé genuína é um ato de confiança tão profundo que resulta em submissão e obediência à pessoa em quem se crê. É um compromisso da vontade, uma inclinação do coração que leva a andar nos caminhos de Cristo.
Portanto, a fé e a obediência são inseparáveis. A fé que salva é uma fé que obedece. O objetivo da pregação de Paulo não era apenas informar as pessoas sobre Jesus, mas conduzi-las a uma relação de confiança e submissão a Ele como Senhor. O evangelho, então, não é uma sugestão a ser considerada, mas um chamado divino que exige uma resposta de rendição e lealdade de todos que o ouvem.
7. O Resultado do Evangelho: Um Povo Amado, Chamado e Santo (Romanos 1:6-7)
Finalmente, Paulo se dirige diretamente aos seus destinatários em Roma, aplicando a eles as verdades do evangelho que acaba de resumir. Ele os descreve não pelo seu status social ou por suas realizações, mas por sua nova identidade em Cristo, que é inteiramente fruto da ação de Deus.
Primeiro, eles são "chamados para serdes de Jesus Cristo". No contexto paulino, este "chamado" não é um convite casual que o ser humano pode aceitar ou rejeitar por sua própria força de vontade. Trata-se de um chamado eficaz e irresistível, uma ação poderosa do Espírito Santo que atrai o pecador, abre seu entendimento e inclina sua vontade para Deus. Assim como Paulo foi chamado na estrada de Damasco, os crentes em Roma também foram atraídos por essa compulsão divina de amor para pertencerem a Cristo.
Em segundo lugar, eles são "amados de Deus". Essa expressão vai além do amor geral de Deus por toda a sua criação. Refere-se a um amor especial, redentor e salvador. É o amor eletivo de Deus que escolheu um povo para si, um amor que motivou o sacrifício de Cristo na cruz. Os crentes são, portanto, objetos desse afeto particular de Deus, que os separou do mundo para serem seus filhos.
Por fim, esse chamado e esse amor têm um propósito claro: eles foram "chamados para serdes santos". Esta afirmação corrige qualquer interpretação equivocada da graça. Ser eleito, amado e chamado irresistivelmente por Deus não é uma permissão para a complacência ou para uma vida pecaminosa. Pelo contrário, o objetivo final do evangelho é a santificação. A mesma graça que salva é a graça que transforma, capacitando os crentes a viverem uma vida de obediência e pureza, em conformidade com a vontade de Deus.
Paulo conclui sua introdução com uma bênção: "graça a vós outros e paz da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo". Ao colocar Jesus Cristo no mesmo nível de Deus Pai como a fonte originadora da graça e da paz, ele faz uma declaração profunda sobre a divindade de Cristo. A salvação e a bênção fluem igualmente do Pai e do Filho, selando a majestade daquele que é o centro do evangelho.
Augustus Nicodemus. 01. O Evangelho de Deus (Rm 1.1-7). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=M31Ol7RJYqk&list=PLQ__KBt7xtI-XkAaKZmLolb4VlGsMDex1. Acesso em: 10/09/2025.